Notas historiogáficas
O objetivo principal deste artigo é analisar as formas de governança de António Pedro de Vasconcelos na Colônia do Sacramento, incluindo o cotidiano administrativo da alfândega, instituição responsável pela fiscalização e pela cobrança de tributos nos portos, e os agentes comerciais lusitanos. O estudo foca especialmente em uma região de fronteira considerada transimperial nos anos de 1722 e 1726. A escolha do período justifica-se pela consolidação da presença administrativa lusa e pelo aperfeiçoamento da fiscalidade e tributação aduaneira.
Diante desse contexto singular, esta seção busca uma discussão mais abrangente, incorporando contribuições de estudiosos que exploram, do ponto de vista conceitual, as complexas relações não apenas nesse território, mas também em outras regiões, como a América inglesa, Cuba e a Flórida, que aqui servirá como lente de observação. Assim como nesses lugares, na Colônia do Sacramento se observou um intenso trânsito de pessoas e embarcações, que estabeleceu uma interconexão vital entre os impérios português e espanhol.
Assim, é crucial esquadrinhar as dinâmicas fronteiriças e os desafios enfrentados pelos administradores na gestão dessa interação entre as colônias dos dois impérios ibéricos. A presença de agentes lusitanos e espanhóis contribuía para um cenário de influências e estratégias, enriquecendo não apenas as vinculações comerciais, mas também as práticas administrativas e políticas. Isso moldou a Colônia do Sacramento como um ponto importante nas redes coloniais.
Portanto, compreender a conjuntura na qual se delineou as relações e a dinâmica administrativa na Colônia do Sacramento é essencial para uma análise da história transimperial na América. A interconexão entre as esferas portuguesa e espanhola, mediada por esse ponto geográfico estratégico, lança luz sobre os processos complexos que moldaram a região e sua importância no contexto mais amplo do domínio colonial na época.
Partindo da perspectiva de Ernesto Bassi acerca do território caribenho, em que ele cita os muitos habitantes da América inglesa, de Cuba e da Flórida, que circulavam por aquele local e pela costa do Atlântico, se conectando a marinheiros, autoridades reais, escravos e comerciantes por meio de uma experiência transimperial, pretendemos observar a atuação do governador Antônio Pedro de Vasconcelos, na Colônia do Sacramento, e suas interações com os atores que transitavam pelas regiões do extremo sul da América (Bassi Reference Bassi2017, 15–16).
Lucia Rodriguez Arrillaga esclarece que os funcionários de regiões transimperiais, como a região platina, se enfrentaram na elaboração de memórias e da cartografia diante do desafio de converter “regiões” em que existiam disputas, que estavam ocupadas, fazendo parte de uma estratégia de afirmação do poder e de construção do projeto político das monarquias ibéricas. Assim, Arrillaga defende que grande parte dos domínios americanos não eram propriamente territórios, entendidos como espaços de jurisdição de uma cidade, unidade por excelência do projeto colonizador dos impérios ibéricos na América. Dessa forma, em regiões de disputas de fronteiras, foi elaborado um novo tipo de administração que garantia a demarcação de cada monarquia (Reference Arrillaga2019, 1–2).
Fabrício Prado (Reference Prado2012, 168–184) defende que os indivíduos manipulavam ou se envolviam com redes transimperiais, e estabeleciam, dessa forma, ligações importantes entre os impérios no mundo atlântico, destacando as ligações entre agentes históricos, em vez de processos econômicos e políticos formais. A atuação do governador Antônio Vasconcelos corrobora essa afirmação, uma vez que este e também os agentes alfandegários na Colônia do Sacramento mantinham contato com outras regiões dos Impérios Ibéricos. Essas interações permitiam um papel crucial na difusão das relações econômicas e políticas, fortalecendo os laços administrativos e o comércio de mercadorias entre as diversas partes envolvidas, tanto pelas vias lícitas, quanto ilícitas.
Por um largo período na historiografia brasileira, as fronteiras luso-espanholas no Atlântico-sul foram interpretadas como palcos de constantes confrontos em razão de questões não só territoriais como também políticas e econômicas. No século XVI, as duas Coroas Ibéricas trataram de assegurar a posse de terra no continente americano. Assim, apesar do Tratado de Tordesilhas ter estabelecido a posse de uma vasta parte leste do novo continente para os portugueses, era frequente, nesses territórios a presença de espanhóis, que almejavam conquistar também uma parte voltada para o Oceano Atlântico, após terem ocupado as costas americanas junto ao Pacífico (Santos Reference Santos1999, 172).
Entretanto, após sucessivos ataques dos bandeirantes paulistas, que se estabeleceram na mesopotâmia entre os rios Paraná e Uruguai, os aventureiros castelhanos bateram em retirada, favorecendo o avanço da ocupação portuguesa até Laguna, já no final do século XVII (Santos Reference Santos1999, 73). O desinteresse momentâneo dos espanhóis e a política expansionista de D. Pedro II fizeram com que os lusitanos levassem seus domínios até o rio da Prata, com a fundação da Colônia do Sacramento, em 1680, na margem oriental do referido rio. Ela viria a ser o ponto de articulação do contrabando e a porta de entrada da prata espanhola para as conquistas portuguesas. Por isso, os conflitos começaram logo após sua fundação e se prolongaram por quase dois séculos (Santos Reference Santos1999, 173).
Segundo Jaime Cortesão (Reference Cortesão1954, 135), desde os fins do século XVII, e depois da terceira fundação da Colônia, em 1716, os portugueses haviam criado naquele território uma economia nova e um gênero de vida próprio, dos quais, pela colaboração com os espanhóis de Buenos Aires, Santa Fé e Corrientes, veio a sair um tipo social específico, o do gaúcho, que se tornou comum tanto no Rio Grande do Sul, como em terras uruguaias e argentinas.Footnote 1
Paulo Possamai destaca que a Colônia do Sacramento foi fundada na margem esquerda do rio da Prata por D. Manuel Lobo, obedecendo ao plano do príncipe regente, de expandir os domínios portugueses na América, a fim de assegurar vantagens territoriais e econômicas na região. A ocasião era propícia, pois a Espanha de Carlos II, o último Habsburgo espanhol, não parecia capaz de opor resistência aos velhos projetos expansionistas portugueses que visavam dominar o estuário platino e, através dele, assegurar a manutenção do fluxo de prata contrabandeada das minas de Potosí, por via dos portos da América portuguesa (Possamai Reference Possamai2007, 8).
Com os olhos da Europa convergindo para o rio da Prata e a opulência da circulação dos metais preciosos, a falta de homens para a colonização transformou a região, no dizer de Capistrano de Abreu, num emaranhado “antes de contrabandistas que de soldados” (Abreu Reference Abreu1907,180). Fábio Kühn e Adriano Comissoli apontam que, enquanto esteve sob domínio português, a Colônia do Sacramento foi uma localidade singular. Praça forte, marcada pela vida castrense e também, segundo os autores, “ninho de contrabandistas.” Situada muito ao sul dos domínios lusos, surgida como fortaleza militar que marcou a disposição portuguesa em estender seus domínios até o rio da Prata, foi, ao longo do século XVIII, um importante entreposto comercial. Após o cerco de 1735–1737, com a imposição do campo de bloqueio pelos espanhóis, os habitantes de Sacramento ficaram confinados a um espaço vigiado e restrito (2013, 58).Footnote 2
Entre o espaço temporal que abrange parte dos reinados de D. Pedro II e D. João V, vale destacar o governo de D. Manuel Lobo, nomeado governador do Rio de Janeiro, em 1679, que no seu Regimento recebeu a instrução para erigir um porto fortificado naquele estuário platino. Artur de Sá e Meneses, nomeado governador fluminense, em 1697, foi o primeiro com a patente de capitão-general, ou seja, exercia também a função de comandante militar da região. Também foi-lhe concedida a jurisdição sobre as minas recém-descobertas e, em 1698, a capitania de São Paulo subordinou-se ao governo do Rio de Janeiro e, logo no ano seguinte, 1699, a Colônia do Sacramento sujeitou-se ao mesmo governo (Gouvêa e Bicalho Reference Gouvêa and Bicalho2013, 26).
Do ponto de vista jurídico, Marcela Tejerina defende que a praça militar e mercantil da Colônia do Sacramento surgiu como um presídio, jamais tendo sido considerada como uma vila, pois não teve um concelho municipal que expressasse as demandas das elites locais.Footnote 3 A historiadora aponta ainda que, no início, mesmo recebendo o aporte de famílias colonizadoras, sua população não era significativa (Tejerina Reference Tejerina2018, 55).
Fernando Jumar descreve que a primeira fundação da Colônia do Sacramento, em janeiro de 1680, somente durou até o mês de julho daquele ano, quando o governador de Buenos Aires obteve êxito na expulsão dos portugueses. Em 1683, a região é restituída aos portugueses, que ali permanecem até maio de 1705, quando novamente é tomada pelos espanhóis. Somente com o Tratado de Utrecht, em 1716, a Colônia passou a ser controlada pelos lusitanos, ficando nessa condição até outubro de 1762, quando foram expulsos pelos espanhóis.Footnote 4 No ano de 1763, voltou para o domínio da Coroa portuguesa, em razão de tratados diplomáticos (Fontainebleau e da Paz de Paris) (Jumar Reference Jumar2004, 169).
Desde a segunda metade do século XVI, naquele sítio se intensificou um importante comércio de produtos europeus, via Buenos Aires, com destino a Tucumán, as minas de prata do Potosí, a Charcas e mesmo além do Peru, no novo reino de Granada.Footnote 5 No século seguinte, foi incorporado o tráfico de escravizados africanos. Destaca-se que os portugueses se tornaram os principais fornecedores de escravizados para as colônias espanholas, até 1640 (Borucki Reference Borucki2017, 681). Em razão disso, a região despertava grande interesse das duas Coroas Ibéricas, por seu potencial comercial e serviu de palco para disputas travadas pela sua posse, razão pela qual seu espaço fronteiriço estava em constante movimento, ora pertencendo aos espanhóis, ora aos lusitanos. De acordo com Alice Canabrava (Reference Canabrava1984, 89), por ali eram promovidas transações comerciais que compreendiam, segundo o registro alfandegário, quantias vultosas.
Luís Ferrand de Almeida demonstra que navios partidos de Portugal e do Brasil transportavam para o grande estuário produtos manufaturados, especialmente roupas, que trocavam por couros e prata. Também os ingleses do asiento faziam negócios através da praça portuguesa.Footnote 6 Almeida indica que, apesar dos frequentes incidentes com militares espanhóis e com índios das missões jesuíticas, os moradores da Colônia iam se espalhando pela campanha uruguaia, onde caçavam o gado vacum que nela abundava, para aproveitarem os couros e a carne. Desse modo, tornavam-se inexoráveis os contatos com os vizinhos de Buenos Aires que ali se dedicavam às mesmas e inevitáveis tarefas, portanto, às relações comerciais, a tal ponto que, em 1727, o governador desta cidade se queixava da inutilidade dos seus esforços para impedi-las, concluindo pela impossibilidade de evitar essa comunicação (Almeida Reference Almeida1990, 10).
Fabrício Prado aponta a relação dos comerciantes do Rio de Janeiro, que controlavam as redes de introdução de mercadorias para as regiões interiores da colônia, incluindo aí o extremo sul da América. Destaca também que a presença lusitana na Colônia do Sacramento, com fortes vínculos com o Rio de Janeiro, cumpria um papel mais complexo dentro de uma política de expansão territorial, visando ao controle de mercados, ao acesso à produtos da região e à incorporação espacial de uma região de fronteira (Prado Reference Prado2002, 33–34). Naquele espaço até então impreciso, nas fronteiras entre dois impérios —o espanhol e o português— onde não havia uma definição exata sobre quem exercia a soberania efetiva do território e ainda se observava uma presença menor dos agentes do poder metropolitano, a circulação de pessoas e bens era intensa (Kühn e Comissoli Reference Kühn and Comissoli2013, 56).
Miguel Dantas da Cruz (Reference Cruz2015, 201–211) demonstra que as primeiras iniciativas relacionadas com o restabelecimento da fortaleza de Sacramento (1716–1718) foram realizadas com recurso de materiais e mantimentos enviados pelo Rio de Janeiro, ainda que tivessem sido prometidas peças de artilharia do reino. Victor Hugo Abril (Reference Abril2018) mostra que governadores, após desembarcarem no porto fluminense, eram incumbidos de dirigir-se à região platina, o que ocasionava conflitos com a câmara da cidade do Rio de Janeiro. Valter Lenine Fernandes (Reference Fernandes2021) indica que, no final do século XVII, a fundação da Colônia do Sacramento exigiria um maior aporte de recursos e para tanto, houve a necessidade de novas fontes de receita, ao que os cidadãos politicamente responsáveis na capitania fluminense responderam com o oferecimento da dízima da alfândega sobre as mercadorias que entrassem na cidade. Vale destacar que, nessa época, o porto do Rio havia conquistado importância estratégica já que era por ele que circulava o grosso do tráfico para as regiões mineradoras e por onde eram exportados os metais preciosos. Essa situação contribuiu para um novo desenho na aduana fluminense, gerando aumento do número dos funcionários e reorganização da sua estrutura, posto que passou a ser responsável pela captura econômica de uma vasta região (Fernandes Reference Fernandes2021, 24).
A Colônia do Sacramento logo cedo se tornou uma rival comercial de Buenos Aires. Maria José Goulão descreve que a distância entre as duas Praças era marcada por uma travessia que levava apenas algumas horas de barco, e esse trecho separava o território português e o da coroa espanhola. A Colônia também estava numa posição privilegiada para servir à navegação fluvial ao longo do rio Paraná. O porto português atraía os recursos pecuários da pampa uruguaia e as caravanas de prata que vinham de Córdoba para Buenos Aires. Pequenos barcos passavam facilmente de um porto para o outro, com bens de contrabando (Goulão Reference Goulão1999, 138).
Vale lembrar que o comércio ilegal existia no seio de uma ordem de interesses, na qual os colonos, apesar de dialogarem com o mundo oficial e serem leais à Coroa, encontravam meios para auferirem lucros e enriquecerem (Cavalcante Reference Cavalcante2006, 29). O contrabandista tolerado pertencia ao sistema e mantinha boas conexões com as elites governantes, cujas funções oficiais pressupunham exatamente combatê-lo (Pijning Reference Pijning2001, 399). Além disso, as autoridades portuguesas viam com bons olhos a entrada da prata oriunda da América espanhola, uma vez que esse metal era essencial para a cunhagem de moedas e o comércio com o oriente (Pijning Reference Pijning1997, 152).
Nesse cenário, Ernst Pijning destaca a existência de uma simbiose entre os privilégios comerciais e as atividades de contrabando. As autoridades portuguesas enxergavam nesses privilégios uma brecha que permitia a participação impune de estrangeiros no comércio ilegal. Essa visão estava solidamente fundamentada, e diplomatas estrangeiros compartilhavam opiniões similares. Como exemplo, o historiador menciona as comunicações dos diplomatas franceses e os relatos do contrabando praticado pelos governadores da América portuguesa em relação à América Espanhola (Pijning Reference Pijning1997, 29).
Heloísa Liberalli Bellotto destaca que a preocupação do governo português ia além de assegurar, a todo custo, os quintos do ouro, evitando descaminhos e fraudes, protegendo e controlando novos achados. As capitanias centrais e sulinas do Estado do Brasil apresentavam também à Metrópole, em meados do século XVIII, grandes desafios. Entre eles, destacava-se a necessidade de organizar, no Prata, uma ação bélica contra as ofensivas espanholas. Os pontos nevrálgicos eram a Colônia do Sacramento e as proximidades da lagoa dos Patos (Bellotto Reference Bellotto2007, 24).
Em relação à administração da Colônia, Fabrício Prado (Reference Prado2013, 90) afirma que, entre 1722 e 1749, apenas por curtos períodos de tempo, devido a enfermidades, Antônio Pedro de Vasconcelos não esteve à frente do mando em Sacramento. Nesse período, em que se deu a reconstrução da Colônia, de acordo com Jaime Cortesão, contou-se, ainda, com a deserção dos portugueses que buscavam a vida mais fácil que lhes ofereciam as povoações platinas. O governador, que era chefe militar, obrigava os moradores da praça e os soldados a uma disciplina severa (Cortesão Reference Cortesão1954, 151). Nuno Gonçalo Monteiro e Pedro Cardim discutem acerca da fundação de vários presídios no território do futuro Uruguai, durante o governo do brigadeiro Pedro de Vasconcelos. Entre eles, um ficava no mesmo local em que os espanhóis fundaram Montevidéu, em 1726. O aumento da exploração aurífera na zona das Minas acrescentou uma outra dimensão à atividade econômica desenvolvida na zona platina: a troca de ouro por prata, indispensável para os portugueses (Monteiro e Cardim Reference Monteiro and Cardim2013, 12).
Isso posto, podemos dizer que o modo de governar de António Pedro de Vasconcelos na Colônia do Sacramento, na primeira metade do século XVIII, foi marcado por intensas relações entre personagens dos dois impérios: luso e espanhol. O estabelecimento de redes transimperiais serviu para que esse personagem garantisse a paz e o comércio naquela região.
No plano da organização, o presente artigo se divide em três partes além desta introdução. A primeira visa definir o governo e a administração na Colônia de Sacramento. Na segunda, a intenção é verificar como a trajetória do governo de Vasconcelos foi marcada pela escolha de oficiais e pelas relações com diferentes grupos de homens de negócio e com autoridades do reino e da América portuguesa. Por último, conduzimos as considerações finais.
Governo e administração
O objetivo da presente seção é explicar as formas de governar de António Pedro de Vasconcelos na Colônia do Sacramento, suas relações com outros atores e autoridades da América portuguesa e de Buenos Aires, sob o aspecto transimperial, uma vez que esses agentes sociais coabitavam os territórios fronteiriços e disputavam a posse e o uso econômico da região do Rio da Prata.Footnote 7
Na primeira década do século XVIII, o intenso fluxo migratório em direção à Colônia do Sacramento e a crescente colonização estimularam um acúmulo de correspondências para os conselheiros ultramarinos, contendo queixas dos moradores daquela localidade em relação ao governador Manuel Gomes Barbosa. As acusações diziam respeito às sesmarias não entregues, ao maus-tratos aos casais que se estabeleciam na Colônia, ao impedimento aos novos moradores de matarem gado para se alimentarem, à proibição da venda de carne e, ainda, ao cortejo de mulheres casadas. Tais denúncias e o problema da fortificação da Colônia fizeram com que a Coroa substituísse, às pressas, o governador da região.
O novo governador, Antônio Pedro de Vasconcelos, ao tomar posse, escreveu ao Rei D. João V: “Represento a Sua Majestade com meu humilde respeito que esta praça se deve conservar, não porque falte terra na América que se povoe, mas porque nenhuma outra pode fazer equilíbrio na balança onde se pesarem as circunstâncias de se relatar.”Footnote 8 Esse também recebeu, das mãos de seu antecessor, o inventário do governo da região com os relatos de tudo o que havia ocorrido durante sua administração.
O cultivo do trigo, os couros, suas exportações e seus dízimos, a fertilidade da terra para as lavouras, a falta de moradores, a frágil defesa do território e os conflitos com os espanhóis de Buenos Aires eram pontos do relatório de seu antecessor, ao qual Vasconcelos não poupou elogios, retificando que a administração de Manuel Gomes Barbosa “contribuiu muito para o aumento em que esta terra fica e que serviu a Sua Majestade com zelo e limpeza de mãos.”
Contrariando a opinião dos moradores, Vasconcelos reforçava ao rei as qualidades do governador anterior, achando “injustas” as notícias contrárias a ele, uma vez que na Colônia “é preciso concorrer Deus nesse serviço mui especialmente.”Footnote 9 Em suma, a carta de António Pedro Vasconcelos ao rei D. João V era mais uma missiva a favor de Manuel Gomes Barbosa, acerca do período em que este administrou a Colônia. Não esqueçamos que Vasconcelos frisava as características de governar uma região em constante contato com a sociedade de Buenos Aires.
Em 26 de março de 1734, o Governador de Buenos Aires escrevia a Antonio Pedro de Vasconcelos:
Muito bom senhor. Encontrando-me com a ordem expressa do Rei meu Senhor para organizar e demarcar os limites desta Colônia, em vigor da observância do que foi estipulado e acordado nos artigos cinco e seis da Paz feita com Sua Majestade Portuguesa no ano de 1715; e que eu, contemplando Vossa Senhoria, tendo sido igualmente avisado por Vossa Senhoria com as competentes instruções e ordens para o mesmo efeito, e determinado a cumprir o que o Rei meu senhor ordena e prescreve…. Se sirva Vossa Senhoria de me dar uma resposta positiva, indicando o dia fixo, para que ambos concordem em nome de nossos Soberanos com a diligência mais pontual e exata da demarcação, pela importância de sua conclusão o mais breve, como assim me prometeu a pronta deliberação de Vossa Senhoria para alcançar por este meio a mais segura e sólida harmonia entre as Coroas.Footnote 10
Nessa perspectiva, a Colônia do Sacramento estando em uma espacialidade que tinha a presença portuguesa e espanhola seja através do comércio de gado e couro ou por conta da navegação, tinha como lugar-comum a troca de informações entre autoridades governativas ligadas à cultura política dos dois soberanos ibéricos. Esse fato também contribuiu para a construção de uma região colonial baseada na troca de conhecimento político, econômico e social, com características dos dois impérios.Footnote 11
Das informações repassadas ao reino sobre suas impressões da Colônia do Sacramento, consta o aprendizado que Vasconcelos obteve no Rio de Janeiro quando desembarcou pela primeira vez no Estado do Brasil. Cabe lembrar que a Praça carioca era a comunidade portuária de referência para quem se dirigia às Capitanias do extremo Sul. Por isso, o que viria a ser o futuro governador da Colônia do Sacramento desembarcou no porto fluminense, o que lhe proporcionou experiência importante para o aprendizado dos modos de governar no ultramar. Instalado por alguns meses na dita cidade, antes de tomar posse do governo da Colônia, Antônio Pedro de Vasconcelos solicitava trazer em sua viagem “muitas coisas” de que necessitava a região do Prata e conseguiu que o provedor e amigo “Manoel Corrêa Vasques que tem servido naquela Praça [Rio de Janeiro] a Sua Majestade com maturidade e zelo admirável” desse tudo o que cabia “no possível,” principalmente no que dizia respeito às lavouras e ao aumento dos cultivos, ponto salientado pelas instruções por parte do rei.Footnote 12
O tempo no Rio de Janeiro foi importante para o conhecimento das lavouras e de suas técnicas. Não é por menos que ele citava a colaboração do juiz, ouvidor e provedor da alfândega do Rio de Janeiro, Manoel Corrêa Vasques, homem pertencente à elite local, descendente da família Corrêa de Sá, e com vasto conhecimento sobre o tema, visto que era um senhor de engenho.Footnote 13 Estreitando os laços de solidariedade com o juiz e ouvidor, Antônio Pedro de Vasconcelos intercedia pelo auxílio do governador do Rio de Janeiro, recém-chegado de Lisboa, Aires Saldanha de Albuquerque, para que “pudesse trazer lavradores sem grande despesa da Fazenda de Sua Majestade.”Footnote 14
Aires Saldanha atendia ao pedido de Vasconcelos e fazia a arregimentação de homens e casais que chegavam nas embarcações no porto do Rio de Janeiro e que tinham por objetivo remediar a miséria em que se encontravam no reino. Com a colaboração do juiz e ouvidor da alfândega, o governador do Rio de Janeiro não encontrava empecilho para mandá-los à Colônia do Sacramento com a utilidade de se dedicarem às lavouras. Isso reforçou os laços de solidariedade de Antônio Pedro de Vasconcelos com Corrêa Vasques.
De todas essas primeiras impressões de Antônio Pedro de Vasconcelos na posse de seu governo, a estrutura física da região era a que mais lhe chamava a atenção. O porto da Colônia do Sacramento, na visão dele, era um espaço do qual deveriam ser esperados muitos navios da corte portuguesa, uma circulação intensa para o comércio daquela região. Por isso, faria uma “casa capaz de servir de Alfândega.”Footnote 15
O primeiro passo para a estruturação da Colônia, com a chegada de povoadores e de muitas embarcações não só do reino, como de outras nações, foi a construção da Alfândega, no ano de 1722. A criação desta instituição era congênere à efêmera Alfândega de Córdoba, criada nesta mesma Colônia pelos espanhóis, em 1623. A Alfândega portuguesa serviria de barreira às importações clandestinas via região do Prata, às exportações entre as colônias portuguesas e ao ataque de piratas e corsários de diversas nações estrangeiras.Footnote 16
Individualizando o papel de Antônio Pedro de Vasconcelos, a preocupação com as fronteiras, com a fortificação da região do Prata, ou seja, com a defesa do território era meta principal desse agente. Como observado em outras administrações, a utilização e o apoio de povos ameríndios eram essenciais para a construção das fortificações, pois esses povos, por serem “guerreiros e os mais leais a Sua Majestade de todos quantos se tem catequizado na América,” também serviam para as hostilidades com os indígenas sob jugo espanhol.Footnote 17
Todavia, Antônio Pedro de Vasconcelos resolveu estabelecer laços diplomáticos com o governador de Buenos Aires, D. Bruno de Zabala (1717–1734), principalmente no que tange às fronteiras da Colônia do Sacramento e à região de Montevidéu, em fase de fortificação e povoação pelos espanhóis. Silvestre Ferreira da Silva, que ascendeu a cargos militares pelas mãos de Vasconcelos, não poupou adjetivos dos mais qualificados ao governador: ações puras e políticas, inteireza da justiça, ardente zelo por Sua Majestade, retidão e castigo aos delinquentes, piedade, militar veterano, sábias e seguras disposições etc. Dessas memórias, o que mais chamou a atenção foi a amizade com o governador portenho. Enquanto governou Buenos Aires, Zabala conservou com Antônio Pedro de Vasconcelos, “uma cordial amizade, sem que este político trato faltasse cada um à mais severa inteireza das leis, nem transgredissem a mais exata observância das ordens soberanas” (Silva Reference Silva1768, 25).
Silvestre Ferreira reforçava, em suas memórias sobre a Colônia do Sacramento, a “recíproca e sincera amizade dos governadores.” Tanto que Antônio Pedro de Vasconcelos dirigia-se a Buenos Aires para tratar da questão de Montevidéu, que interessava ambas Coroas Ibéricas. Essa “amizade” produziu nos súditos das duas Coroas “um feliz descanso e uma ditosa quietação, que os excitava a tratarem das suas conveniências, ocupando-se na cultura das terras,” principalmente as colheitas de trigo “e mais frutos necessários para a vida humana, que tudo estas terras produzem com vantagem às da Europa.” Além dos vários pomares que eram similares às árvores frutíferas portuguesas, existiam os currais e instâncias de gado que se multiplicavam pelos vastos campos verdes da Colônia (Silva Reference Silva1768, 25).
Para um contemporâneo, como Ferreira da Silva, as relações amistosas entre os governos da Colônia do Sacramento e Buenos Aires garantiam o comércio, a proteção e a paz entre as Coroas. Contudo, quando o assunto era a divisão dos domínios americanos, a amizade transfigurava-se em conflitos. Montevidéu era uma peça-chave no arranjo das atividades comerciais e de trânsito no extremo Sul da América. Independentemente da Coroa, portuguesa ou espanhola, o governador tornava-se figura indispensável no manejo dessas relações.
Não obstante a relação amistosa entre os governadores da Colônia e de Buenos Aires, o governador do Rio de Janeiro, mantinha atitude distinta, ainda intervindo na região, principalmente nas fronteiras, como em Montevidéu. Nesse sentido, a comunicação política do governador da Praça Fluminense Aires Saldanha de Albuquerque com a Coroa se movimentou em torno da ocupação de Montevidéu, o principal eixo para a conquista efetiva de toda a região do Prata. Em setembro de 1723, comunicava ao rei que
Pelo navio de licença que a este porto chegou em 6 do presente mês [setembro de 1723] recebi uma carta de Sua Majestade, expedida pela Secretaria de Estado, em que me ordena mande logo a guarda costa com alguma gente da guarnição desta praça a tomar posse e fortificar-se em Montevidéu, e logo em seu cumprimento mandei preparar a guarda costa com a sua guarnição, e desta praça vai um destacamento de cento e cinquenta homens dos de melhor nota, com três capitães e mais oficiais competentes, e por cabo dele o sargento-mor Pedro Gomes Chaves, que é o que aqui achei mais capaz, que tem visto guerra com bom procedimento nela, e com a circunstância de engenheiro; e, suposto entendo será necessário mais gente, não me atrevo a desfalcar dos terços maior número, pois que estes ambos se compõem de seiscentos homens, entre os quais há muitos velhos quase estropiados e muitos soldados novos.Footnote 18
A falta de homens para compor o terço era uma das queixas de Aires Saldanha, pois segundo o governador, os soldados ou eram velhos “estropiados” ou muito novos. Além disso, o governador pediu reforços da guarda costa da Bahia. Contudo, o rei já vinha sendo informado pelos governadores da Colônia do Sacramento que os espanhóis de Buenos Aires estavam fortificando Montevidéu.
Em 1722, Antônio Pedro de Vasconcelos comunicava ao rei sobre a visita do sargento-maior da Colônia do Sacramento, Manoel Botelho de Lacerda, à cidade de Buenos Aires. O motivo da visita era entregar ao governador D. Bruno Zabala as cédulas reais assinadas por Filipe V, rei da Espanha, e D. João V, rei de Portugal, onde o primeiro restituía ao segundo a prata da Nau Caravela que naufragou próximo a Buenos Aires, em 1720. A argumentação de Vasconcelos era clara: manter a diplomacia na região e reiterar a insatisfação das decisões de Aires Saldanha de confrontar os castelhanos.Footnote 19
Além disso, a carta não era somente para comentar o naufrágio e a restituição de prata. Tinha outra intenção. O mesmo sargento-maior comunicava ao governador que no tempo que estava na cidade de Buenos Aires chegou por “via de Panamá ordem […] despachada da corte de Madri para povoar Montevidéu.” Recebida a ordem do rei espanhol, fez-se uma junta para debater esta matéria e ficou decidido “ajustar esperar-se os navios de registro para com eles se poder dar melhor execução.” Tudo isso fruto das decisões de invasão por parte de Aires Saldanha, que chegavam ao ouvido mútuo por espias.Footnote 20
O detalhamento com que o sargento-maior informava a Antônio Pedro de Vasconcelos foi devido à informação oculta do “presidente do assento real de Inglaterra,” que estava na junta do governador de Buenos Aires, por ser um homem muito poderoso naquela região. Contudo, também era “muito amigo da nação portuguesa.” Com o conhecimento dos fatos em mãos, o governador da Colônia expressava a dúvida de como proceder nessa situação. A princípio, tinha como projeto ocupar, imediatamente, Montevidéu, antes dos espanhóis executarem as ordens do rei Felipe V. Todavia, não saberia se esse impulso seria ou não do agrado do rei D. João V e se o possível esboço da ocupação causaria “na Europa alguma inquietação.”
Antônio Pedro de Vasconcelos comunicava ao governador-geral da Bahia e ao governador do Rio de Janeiro as notícias que recebera. Sem saber como proceder, antes das instruções reais, o governador da Colônia escreve uma carta ao presidente do assento da Inglaterra, que havia informado sobre os planos da ocupação de Montevidéu, para que “comprasse,” ou seja, subornasse, pessoas que fizessem parte da junta do governador de Buenos Aires para informar das últimas decisões a respeito da tal ocupação. Antônio Pedro de Vasconcelos estipulou um preço para subornar essas pessoas: “até cinco mil pesos.” O valor seria pago com “tanto que se consiga sendo estes os meios mais suaves e mais ocultos” que o governador poderia utilizar, “enquanto não chegam as reais ordens de Sua Majestade.”Footnote 21
As diretrizes de D. João V, com essas informações compiladas, foram que a guarda costa da Bahia e do Rio de Janeiro partiriam em direção a Montevidéu. Contudo, a do Rio de Janeiro deveria partir quanto antes sem esperar a da Bahia. A orientação era objetiva: achando-se ou não espanhóis, em Montevidéu, a guarda costa do Rio de Janeiro deveria ocupar imediatamente o território e, estabelecida a ocupação, unir-se ao governador da Colônia, Antônio Pedro de Vasconcelos. O bilhete final do rei mostra o cuidado dessa empreitada militar:
Este negócio é de tanta importância e de tal reputação à minha Coroa como se deixa ver, e assim espero [Aires Saldanha de Albuquerque] de seu zelo e amor que tendes a meu serviço vos aplicareis a ele com tal cuidado, que se consiga o desejado fim de se não perder uma terra que pertence aos meus domínios, guardando nesta expedição grande segredo para que os castelhanos se não previnam e se faça impossível ou mais dificultoso deixá-los fora.
Esse segredo fez Aires Saldanha caracterizar a ocupação de Projeto Montevidéu. Plano este costurado desde Antônio Pedro de Vasconcelos, com suborno das pessoas da junta do governador de Buenos Aires, para informar os detalhes da ocupação daquela localidade. Preocupado com a questão da guarnição militar, Aires Saldanha convocou o mestre de campo Manoel de Freitas da Fonseca a juntar-se à guarda costa em direção à região do Prata.Footnote 22
Assim, a forma de governar de António Pedro de Vasconcelos envolvia conhecimento prévio da administração de seu antecessor, e ainda procurava estabelecer boas relações com autoridades da alfândega, do governo do Rio de Janeiro e de Buenos Aires, com o objetivo de preservar relações transimperiais em uma região que tinha um fluxo constante de indivíduos das possessões espanhola e portuguesa.
O governo e o comércio
Nesta seção, apresentaremos as ações do governador para o incremento do comércio na região, assim como a preocupação com a extração de tributos aduaneiros e a configuração das redes que se estabeleceram com os homens de negócio das diversas partes do Império português.
Em 1725, o governador António Pedro de Vasconcelos deu notícias ao rei D. João V sobre a dízima das cargas dos navios, assim como do tamanho das embarcações que navegavam para a Colônia do Sacramento. A alfândega era uma instituição indispensável na fiscalização das mercadorias,Footnote 23 uma vez que cabia aos seus oficiais, tão logo os navios entrassem no porto, verificar as cartas de fretamento que eram contratos firmados entre o dono do navio e o mercador receptor da carga, o rol daquilo que era trazido com as quantidades e qualidades definidas.
Antes da nau atracar no porto, o governador ordenava o ingresso de um sargento e de dois cabos com a missão de garantir a fiscalização e tributação da dízima das fazendas na aduana.Footnote 24 Como afirmam Valter Fernandes e Helena Sá (Reference Fernandes2021, 418), a dízima da alfândega pode ser definida como um encargo tributário, no valor de 10% sobre as mercadorias que entravam e saíam dos portos. Assim, nesse período a arrecadação da dízima foi de 2:632$930 réis.
A indicação de oficiais para a alfândega da Colônia do Sacramento era atribuição de António Vasconcelos que foi o responsável pela indicação de Antonio Vilela, que ocupou o cargo de Juiz da alfândega, o mais alto da hierarquia aduaneira, até julho de 1729, quando decidiu retornar para o Rio de Janeiro.Footnote 25 Nesse sentido, o governador informou ao monarca, através de uma carta, que Vilela possuía inteligência e capacidade, mesmas características que possuía Caetano do Couto Veloso, que servia no ofício de Escrivão da Fazenda Real. Mais do que elogios, o governador da Colônia tentava demonstrar ao rei que tinha pleno zelo com a manutenção da arrecadação dos tributos.Footnote 26
A partir destas informações sobre a arrecadação da dízima e das qualidades dos oficiais, o governador apontou os gastos da Fazenda Real com o transporte no circuito Colônia —Rio de Janeiro— Colônia. Segundo Antonio Pedro de Vasconcelos, o rei deveria comprar uma galera inglesa que tivesse um porão grande e que não demandasse muita água para se carregar três ou quatro mil couros e munições entre os portos do Rio de Janeiro e de Sacramento. Além disso, garantiria a chegada das fazendas de particulares nos tempos das frotas.Footnote 27 Nesse aspecto, Fabrício Prado descreve que, no século XVIII, a cidade do Rio de JaneiroFootnote 28 consolidou sua importância como um dos principais entrepostos do Atlântico sul, servindo de conexão para diversas rotas terrestres e marítimas entre África, Europa e América (Reference Prado2005, 1).
Ao mesmo tempo em que descrevia o quadro técnico da alfândega e as recomendações do tipo de embarcação a ser utilizada no transporte e no comércio entre a Colônia e o Rio de Janeiro, Antonio Pedro de Vasconcelos se voltou para a valorização das ações do capitão José Barreiros de Carvalho, responsável pela nau Jesus Maria.Footnote 29 Essa nau vinda de Lisboa, no ano de 1724, levava carga de socorro enviada pelo rei Dom João V à Colônia de Sacramento. A preocupação do capitão Carvalho era a viagem ser realizada fora do tempo das monções e com provável escala na Bahia. A possibilidade de ancoragem em Salvador gerava uma preocupação com a obrigação de descarregarem as mercadorias e de essas serem tributadas em dez por cento pelos contratadores da dízima naquela capitania.Footnote 30 Desde então, solicitava ao monarca uma provisão para os contratadores da Bahia não interferirem na carga que era destinada à Colônia.Footnote 31
Vale destacar que o referido governador possuía uma variedade de redes de contatos com homens de negócio de Lisboa, Bahia, Rio de Janeiro e também com autoridades reinóis. Segundo João Fragoso e Fátima Gouvêa, as redes se configuram enquanto instrumentos privilegiados de ação socioeconômica, capazes de entrecortar —e ao mesmo tempo vincular— cenários tão díspares e por vezes contrastantes na busca da defesa dessa diversidade de interesses; centros e periferias que são conectadas através da ação de oficiais da Coroa, de grupos mercantis e mais uma infinidade de outros institutos. São esses aspectos relatados pelo governador da Colônia que verificamos nos canais de comunicação formal viabilizados pelas câmaras, pelos oficiais da justiça do rei no ultramar—, defendidos por Fragoso e Gouvêa como um reforço dos poderes, das posições e interesses que interligavam indivíduos pelas mais diversas partes do império (Fragoso e Gouvêa Reference João and Gouvêa2009, 43).
E nesse sentido, resgata-se uma acepção das redes do governador e da dinâmica portuária da Colônia do Sacramento através de uma carta de Antônio Pedro de Vasconcelos, datada de 23 de março de 1726 e endereçada ao vice-rei e governador-geral do Estado do Brasil, Vasco Fernandes César de Meneses.Footnote 32 No documento, Vasconcelos relatou a dinâmica de algumas embarcações, como a galera do Coronel José Alvares Viana e de Francisco Xavier da Silveira, que iam comercializar na região do Prata e transportaram cerca de 4.592 couros para serem negociados na Praça carioca; fez referência também à nau da Companhia de Francisco Pinheiro, que vinha de Lisboa com escala pela cidade do Rio de Janeiro.Footnote 33 Segundo Antonio Pedro de Vasconcelos, a companhia de Pinheiro descarregava mercadorias do reino e prontamente recebia os couros comprados dos espanhóis, retornando ao porto fluminense para realizar inspeção na alfândega e seguir juntamente com a frota para Lisboa.Footnote 34
Nesse aspecto, Joaquim Romero Magalhães demonstra que muitas embarcações frequentavam o porto da Colônia - traziam mercadorias do Brasil e retornavam carregadas de prata e couros. Sacramento prosperava, diziam os moradores por volta de 1730, desejando o estabelecimento da vida municipal, sendo vila ou cidade. Tal prosperidade estimulou o desenvolvimento naquela localidade do contrabando, saindo de lá imensas quantidades de prata e couro (Reference Magalhães2011, 73).
As descrições de António de Pedro Vasconcelos davam conta, além das relações com o governador de Buenos Aires, dos perigos que envolviam a navegação no rio da Prata e ainda da situação dos pastos que serviam ao gado, que sustentava a guarnição, e que ficavam a sete léguas da cidade-porto. O governador do lado espanhol sugeria que a criação do gado poderia gerar o estabelecimento de uma nova povoação portuguesa. Embora houvesse uma preocupação constante com os limites territoriais, Vasconcelos afirmava que existia uma ausência de pasto na espacialidade da Colônia.Footnote 35
Nesse quesito, também é importante observar a conexão da barra do porto do Sacramento com o sertão. Maria Fernanda Bicalho expõe que esse território no extremo sul da América foi pivô das disputas pela soberania dos países ibéricos ao longo do século XVIII. A vasta extensão de terras do sul, da Colônia do Sacramento ao Rio Grande, não despertava interesse em si própria, mas por se constituir em porta ou chave dos sertões mineiros (Bicalho Reference Bicalho1999, 82).
É importante salientar que após uma década, aproximadamente em 1736, em um período de intensos conflitos entre as duas monarquias ibéricas, o Rei Dom João V escreveu para o governador da Colônia do Sacramento, relatando o confisco de navios portugueses pelo governador de Buenos Aires nas proximidades da Colônia do Sacramento, impedindo assim a livre navegação dos vassalos portugueses no Rio da Prata.Footnote 36 Portanto, o comércio nessa região também era impactado pelas relações de conflitos entre os impérios espanhol e português, sendo essa mais uma característica de um território encravado com uma dualidade de circulação de informações.
O que se pode observar até aqui é que a Colônia de Sacramento foi de grande importância para os interesses econômicos e comerciais dos grupos de homens de negócio e das Coroas espanhola e portuguesa. Essa afirmativa pode ser corroborada pelo fato da instalação por parte da administração portuguesa de uma alfândega naquela região. Vale lembrar que, além da cobrança de tributos sobre as mercadorias importadas e exportadas, tal instituição tinha como uma das suas atribuições o auxílio às embarcações na região portuária. Nesse sentido, a preservação do território mais ao sul da América era de interesse não só pela possibilidade do estabelecimento de trocas comerciais com regiões de colonização espanhola, mas também pela preservação de conquista territorial para ambas as monarquias.
Conclusão
Neste artigo, procurou-se demonstrar como as espacialidades do extremo sul da América foram espaços dinâmicos e fluidos, de intensos confrontos territoriais, políticos e econômicos. Também foi identificado que navios partidos de Portugal e do Brasil transportavam para o estuário platino produtos manufaturados e trocados por couros e prata. Além disso, eram constantes as relações comerciais com os vizinhos de Buenos Aires.
Nesse sentido, esse estudo permitiu verificar que a forma de governar de António Pedro de Vasconcelos na Colônia foi marcada por relações com autoridades da América portuguesa, da América espanhola e dos reinos de Portugal e da Espanha. A vivência de Vasconcelos no Rio de Janeiro foi importante para o estabelecimento de aproximações e de facilitação de autorização de por parte do juiz e ouvidor Manoel Corrêa Vasques do transporte de pessoas e fazendas para o Sacramento. Por sua vez, averiguou-se a necessidade do governo português estabelecer relações diplomáticas com o governador de Buenos Aires, D. Bruno de Zabala, para garantir a paz do domínio luso na região do Prata.
Constatou-se um cuidado do governador com a arrecadação de tributos da alfândega e com o tamanho das embarcações que faziam o transporte de pessoas e mercadorias entre a Colônia e o Rio de Janeiro. Além disso, na indicação de bons nomes para os ofícios, Vasconcelos tentava demonstrar o zelo que tinha com os rendimentos da Fazenda Real. Também foi possível apreender a presença de representantes de homens de negócio que usavam a fortaleza como entreposto comercial na região do rio da Prata. Percebe-se a presença de grupos mercantis de Lisboa e da América portuguesa naquela localidade, que era de grande interesse da Coroa lusa desde os primórdios da colonização.
Como síntese das conclusões do artigo, destaca-se o objetivo da governação transimperial para garantir a presença no extremo Sul da América e o comércio português na região do rio da Prata.
Agradecimentos
Os autores agradecem pela leitura crítica da doutora em história Helena de Cássia Trindade de Sá, e a revisão do texto, realizada pela doutora em letras Edilaine Vieira Lopes. Além disso, aos revisores anônimos da Latin American Research Review, pelas críticas, sugestões e pelos pertinentes comentários. Por último, a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (FAPERGS).