Prelúdio: De Moçambique para o mundo
A República Popular de Moçambique, país localizado no sudeste de África, formalizou a sua independência a 25 de junho de 1975, após uma guerra de libertação (1964-1974) que opôs as autoridades portuguesas à Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO)Footnote 1. O novo governo, sob a presidência de Samora Machel (1933-1986), estabeleceu um regime de partido único com fortes influências marxistas-leninistas, incluindo apoio diplomático de países socialistas. Dois anos após a independência, o país foi assolado por uma nova guerra, que opôs o governo da FRELIMO a um movimento militarizado que, mais tarde, se proclamou como a Resistência Nacional Moçambicana (RENAMO), de perfil anticomunista e com fortes ligações aos regimes do apartheid da Rodésia e da África do Sul. Durante este período, a queda do avião presidencial provocou a morte de Samora Machel em outubro de 1986, tendo este sido prontamente substituído pelo ex-Ministro dos Negócios Estrangeiros Joaquim Alberto Chissano (1939-). A política estatal promovida pelo novo presidente coincidiu com o início do Programa de Reestruturação Económica (PRE) em 1987, sob o aval do Fundo Monetário Internacional, o FMI, acabando por flexibilizar as teorias marxistas em prol de uma maior abertura à economia de mercado. Simultaneamente, o país passou por uma série de transformações que desaguaram num acordo de paz (1992) e na implementação de um regime multipartidário de matriz capitalista (1994) (Rocca Reference Rocca2012)Footnote 2. Durante este período, os músicos e os agentes culturais procuraram contribuir ativamente para as transformações em curso, adotando um conjunto de medidas e caminhos sobre os quais irei refletir neste artigo.
Recentemente, tive a oportunidade de analisar vários tópicos relacionados com música em Moçambique, com particular foco no período que compreendeu a presidência de Samora Machel (1975-1986). Esses temas incluíram, entre outros aspetos, uma análise aprofundada das práticas de canto coral e de música tradicional (Freitas & Carvalho Reference Freitas and de Carvalho2022), a importância e influência dos sistemas de radiodifusão antes e depois da independência (Freitas Reference Freitas2021; Freitas Reference Freitas2022), as políticas editoriais e de produção fonográfica (Freitas Reference Freitas2023), o estatuto social e laboral dos músicos (Freitas Reference Freitas2023a), e até mesmo algumas soluções governamentais alternativas com impacto na música mas que não tiveram prosseguimento (Freitas Reference Freitas2022a). Em alternativa, este artigo centra-se nas primeiras experiências que visaram a promoção e comercialização de música moçambicana fora do país durante a primeira presidência de Joaquim Chissano, por sua vez marcada pela transição de um sistema de partido único para outro de cariz multipartidário (1987-1994), aproveitando, no processo, o interesse gerado pela então recém-criada categoria World Music. Como principal argumento, defendo que esta categoria foi usada pelos produtores, músicos e representantes políticos como um escape à situação letárgica que se vivia no país, procurando, simultaneamente, sinalizar à comunidade internacional as várias reformas – culturais, económicas e institucionais – que estariam em curso. É ainda relevante mencionar que este trabalho deriva de uma investigação original de doutoramento em Etnomusicologia sobre “a construção sonora de Moçambique” pós-colonial, tendo por base três eixos analíticos: política cultural, radiodifusão e indústrias da música. Recorrendo à etnografia do passado como a principal estratégia metodológica (Bohlman, Reference Bohlman, Barz and Cooley1996; McCollum, Reference McCollum and David2014), sobretudo a partir da análise de artigos de imprensa e de entrevistas a 25 agentes-chave, incluindo músicos, funcionários da rádio, produtores fonográficos, representantes da indústria dos espetáculos e representantes políticos, esta investigação teve como principal objetivo a compreensão das políticas culturais e musicais promovidas durante o período socialista em Moçambique (1974-1994)Footnote 3.
O conceito World Music pode ser entendido como sinónimo de diversidade musical, referindo-se, nesta aceção, a toda a música existente no mundo (Nettl Reference Nettl2010:33-53). No entanto, neste artigo, World Music reporta-se à categoria de mercado criada em 1987, na cidade de Londres, por onze representantes de companhias discográficas (Cottrell Reference Cottrell2010:16). O objetivo era claro: promover música do mundo, com a exceção dos países da América do Norte e da Europa Ocidental (ainda que, por vezes, abarcasse a música tradicional desses espaços), para ser comercializada por todo o mundo. Phillip Bohlman acrescentou, a este respeito, que “this world music too, owes its origins to the 1980s, when the executives of record companies and advertising specialists determined that popular music from outside the Anglo-American and European mainstreams needed a distinctive name” (Bohlman Reference Bohlman2002:22).
Esta categoria esteve no foco de vários estudos etnomusicológicos desde o final da década de 1980, tendo as suas principais tendências de investigação sido resumidas no artigo “Music and the Global Order” (Reference Stokes2004) de Martin Stokes. O autor identificou duas perspetivas dominantes: por um lado, o pessimismo marxista de Veit Erlmann (Reference Erlmann1996, Reference Erlmann1999) e, por outro, o liberalismo radical otimista de Mark Slobin (Reference Slobin1992). Stokes reconhece que esta dualidade é artificial e propositadamente exagerada, nem que seja porque diferentes perspetivas coexistiam, com alguns autores a concentrarem-se em noções como imperialismo cultural (Malm Reference Malm1993), enquanto outros recusariam por completo uma ideia de domínio ocidental, justificando o seu ponto de vista com a influência de empresas não-ocidentais, como é o caso da japonesa Sony Corporation (Garofalo Reference Garofalo1993). Paralelamente, certos autores focaram-se nas perceções dos músicos locais e do público em geral (Guilbault Reference Guilbault1993); enquanto outros procuraram explorar noções de alteridade, operadas por agentes responsáveis pelas indústrias da música, sem descurar, nas palavras de Whitmore, “the dynamics of representational and interpretative distortion across the Schizophonic gap” (Whitmore Reference Whitmore2016:330).
Steven Feld (Reference Feld, Feld and Keil1994) recorreu à justaposição dos conceitos schizophonia de Murray Schafer e schizogenesis de Gregory BatesonFootnote 4 para explicar os discursos produzidos em torno da mercantilização da World Music e da World BeatFootnote 5: a primeira é frequentemente adjetivada como verdadeira, tradicional, real e autêntica; enquanto a segunda é tida como híbrida, sincrética, misturada ou crioula. Estas dicotomias, que opõem valores como autenticidade-artificialidade, sério-trivial e verdadeiro-falso são uma constante nos discursos de académicos, jornalistas, fãs, performadores e consumidores, representando, no limite, um olhar ocidentalizante sobre o mundoFootnote 6. Consequentemente, a justaposição das duas palavras com prefixo “schi-” epitomiza a complexidade institucional e a pluralidade de significados relacionados com o fenómeno da World Music. Assim, e em consonância com as premissas postuladas por Hutnyk, o estudo da World Music deve considerar, entre outros aspetos, a relação entre diferentes modelos comerciais promovidos pelas indústrias da música, a influência de indivíduos e de empresas particulares (ocidentais ou não), a articulação entre noções de autenticidade e de tradição, as dinâmicas de política internacional e de relações de mercado, bem como as tecnologias disponíveis em cada país (Hutnyk Reference Hutnyk1998: 405-406).
Embora este artigo tenha em consideração as supracitadas perspetivas teóricas, este não se enquadra em nenhum modelo pré-estabelecido para o estudo da World Music, procurando, em alternativa, analisar três casos de internacionalizaçãoFootnote 7 provenientes de um único país – Moçambique – durante os oito anos que marcaram o período de transição de um sistema de partido único e socialista, para um sistema multipartidário e liberal (1987-1994), tendo por base um contexto de construção nacional profundamente marcado por sucessivas guerras. O primeiro caso reporta-se à Orchestra Marrabenta Star de Moçambique, um grupo criado com o propósito de promover música moçambicana no exterior, com foco particular na categoria Marrabenta. O segundo caso reporta-se ao Grupo RMFootnote 8, através de uma análise pormenorizada da canção vencedora do Grand Prix Découvertes 90 promovido pela Radio France Internationale – “Baila Maria”. Por fim, o terceiro caso reporta-se aos discos produzidos pela etiqueta Real World dos grupos moçambicanos Eyuphuro (1990) e Ghorwane (1993). Como veremos adiante, a categoria World Music serviu como um meio para sinalizar a comunidade internacional para as reformas culturais, económicas e institucionais ocorridas durante estes oito anos de transição. Tal ocorreu, numa fase inicial, e tendo como foco os dois primeiros casos, através de uma narrativa promovida e controlada pela FRELIMO que visava desviar a atenção internacional da guerra, até à subsequente e inevitável abertura em relação ao fracasso da experiência socialista, tal como evidenciada nos discos publicados pela etiqueta Real World já nos primeiros anos da década de 1990.
Este artigo enquadra-se, igualmente, nas teorias sobre construção da nação e estudos pós-coloniais em países africanos. São vários os etnomusicólogos que têm vindo a aprofundar este tema, destacando-se, entre outros, Waterman sobre a Nigéria (Reference Waterman1990), Carvalho sobre Moçambique (Reference Carvalho1997), Turino sobre o Zimbabwe (Reference Turino2000), Askew sobre a Tanzânia (Reference Askew2003), e Meintjes sobre a África do Sul (Reference Meintjes2003). Coletivamente, estes estudos confirmam a existência de um credo etnomusicológico comum: não obstante o país ou época histórica sobre o qual incidem, todos procuram demonstrar que, mais do que refletir os ideais nacionalistas, o comportamento expressivo teve um papel determinante para forjar a nação, desenvolvendo, além do domínio da política formal, expectativas sobre a soberania cultural, política e económica. Por fim, a distinção de Phillip Bohlman entre “música nacional” (destinada a promover a coesão interna de uma ideia de nação) e “música nacionalista” (promovida com propósitos de exibição internacional) (Bohlman Reference Bohlman2011:59) é particularmente relevante para o caso moçambicano, já que foram empregues práticas musicais e temáticas líricas muito distintas consoante o mercado a que se dirigiam – fosse ele nacional ou internacional. Por conseguinte, as primeiras tentativas de comercializar música moçambicana no mercado da World Music enquadram-se no conceito música nacionalista postulado por Bohlman, pois estas foram fundamentalmente concebidas para as audiências internacionais.
1. Procurando uma alternativa: Orchestra Marrabenta Star de Moçambique (1987)
“O ‘Grupo’ [RM] não acha interesse em fazer disco aqui (em Moçambique). A edição de nossos discos não teria promoção, porque as composições são do absoluto domínio público e não há nenhuma agência especializada em direitos de autor e protecção de fonogramas. O repertório do “Grupo” estaria exposto a eventuais plágios internacionais e estaríamos prejudicados nos aspectos de propriedade, abonos de direitos e da representatividade artística […] Se nos interessasse apenas o dinheiro bastava-nos vender esse mesmo repertório a quem quer que o quisesse reproduzir a nível internacional”. (Zeca Tcheco, Tempo, 25-02-1990)Footnote 9
Esta citação da autoria de Zeca Tcheco, baterista da orquestra da Rádio Moçambique (Grupo RM), publicada na revista Tempo em fevereiro de 1990, esclarece que não havia qualquer vantagem em publicar fonogramas em Moçambique. Na verdade, a indústria fonográfica estava imersa numa profunda crise, por sua vez agravada pela guerra civil. Num artigo recentemente publicado, tive a oportunidade de identificar seis fatores que contribuíram para a situação letárgica desta indústria: primeiro, a ideia de comercializar música seria fortemente desvalorizada ou até mesmo criticada, algo expectável tendo em conta a matriz socialista adotada; segundo, os recursos de produção e de reprodução musical eram muito limitados, desde o material de estúdio aos gira-discos, fazendo com que esta indústria não conseguisse sustentar a relação procura-oferta; terceiro, a falta de técnicos qualificados condicionava a qualidade das gravações e das prensagens; quarto, a imposição de uma política cultural autoritária, sobretudo durante os primeiros dez anos após a independência, limitou a criatividade dos músicos; quinto, o desinvestimento na produção de discos levou à escassez de PVC (vinil); e sexto, a inexistência de legislação de direitos de autor beneficiava os produtores em detrimento dos músicos (Freitas Reference Freitas2023).
Consequentemente, na segunda metade da década de 1980, eram poucos os artistas que se sentiam motivados para publicar discos em Moçambique, procurando, em alternativa, mercados internacionais, sobretudo aqueles que viriam a estar associados à World Music. A título de exemplo, o disco “Graceland” de Paul Simon (1986) teve um enorme impacto nos produtores e artistas moçambicanos, sendo visto como um exemplo de uma lucrativa colaboração entre músicos norte-americanos e sul-africanos, tendo igualmente contribuído para a promoção de géneros locais tais como Isicathamiya e MbaqangaFootnote 10. Foi com base neste exemplo que a primeira experiência moçambicana na senda da World Music se moldou: a Orchestra Marrabenta Star de Moçambique (OMSM).
Lançada em 1987 pela Movimento – Empresa de Entretenimento de Moçambique, uma companhia privada fundada por Aurélio Le Bon, que mantinha, por sua vez, uma relação de proximidade com o governo e com a política cultural da FRELIMOFootnote 11, a OMSM reuniu músicos da Orquestra da Rádio (Grupo RM), bem como de artistas e bailarinas de clubes noturnos locaisFootnote 12. Tinha como principal objetivo promover a música moçambicana à escala internacional, revitalizando no processo o género Marrabenta, após o descrédito que o acometeu durante os primeiros dez anos da independência do país.
Seguidamente, apresentarei uma breve contextualização desta prática: Marrabenta é um modo expressivo, uma categoria de música popular e um estilo coreográfico desenvolvido sobretudo nas províncias do sul de Moçambique – Maputo, Gaza e Inhambane. As narrativas contemporâneas associam-na a uma ação extravasante – até rebentar – por exemplo, dançar até rebentar ou tocar até rebentar as cordas da guitarra (Laranjeira, Reference Laranjeira2014: 44-45). O disco “Marrabenta” do Grupo Djambo, editado pela etiqueta portuguesa Alvorada (Rádio Triunfo, c. 1970), determinou a consolidação deste repertório como uma categoria musical, passando a ser promovida pelo regime colonial enquanto folclore característico das províncias ultramarinas portuguesas. Após a independência, a FRELIMO procurou projetar um modelo cultural baseado na música rural em detrimento da música popular urbana, associando a Marrabenta à classe burguesa decadente e a noções de corrupção moral e sexual que, segundo a frente de libertação, teriam tido uma vigorosa proliferação durante o período colonial. Como resultado, as práticas associadas a esta categoria sofreram um enorme revés após a independência; os agentes locais sugerem que se tratou de uma “desqualificação” generalizada. O seu ressurgimento só ocorreu em 1987 com a criação da Orchestra Marrabenta Star de Moçambique. Aurélio Le Bon explicou-me o processo de criação do grupo:
“Eu criei a Orquestra Marrabenta Moçambique e eu hoje tenho um grande orgulho de tudo isso. O grupo tinha o Wazimbo, que era o meu cantor principal, tinha o Stewart Sukuma que começou no grupo como percussionista contra vontade dele. Chamei a Mingas para cantar connosco. […] E depois disse: ‘Têm só trinta dias, porque até lá estaremos a entrar no avião, vamos para a Europa, vamos para França’. Ninguém imaginava que fosse possível um grupo daquela envergadura – com metais, percussões, dançarinas, cantores – funcionar em tão pouco tempo…”Footnote 13
OMSM apresentou-se pela primeira vez ao vivo em Maputo, diante de uma audiência criteriosamente selecionada, antes de embarcar numa turnê inaugural pela Europa. O grupo foi geralmente bem recebido pelos críticos moçambicanos, sobretudo no que diz respeito à componente instrumental e vocal; a parte cénica das atuações foi, contudo, muito criticada, principalmente a dançaFootnote 14. João Domingos – um músico histórico associado a este género – concordou que, em termos musicais “o grupo corresponde àquilo que se pretende em termos de música ligeira moçambicana com base na Marrabenta”. No entanto, em sua opinião, o grupo reproduzia os defeitos da Marrabenta do período colonial tardio, pelo menos daquela marrabenta que seria apresentada nas boîtes e cabarés, onde as prostitutas dançavam para atrair potenciais clientes. Assim, segundo Domingos, a exibição corporal das dançarinas da OMSM “deturpa o valor cultural da Marrabenta”, acrescentando ainda que “a nossa música não necessita de exotismos”Footnote 15.
Esta reação também pode ser explicada no âmbito da supracitada desqualificação da marrabenta pelos agentes culturais da FRELIMO, principalmente como reação à sua instrumentalização pelas autoridades coloniais como parte do folclore ultramarino português e à sua forte associação aos costumes boémios, que, por sua vez, estariam em conflito com os valores moralistas da FRELIMO. Assim, ao recuperar os movimentos de dança que foram censurados nos primeiros anos após a independência, as modificações feitas pela OMSM à prática da marrabenta podem ser interpretadas como o primeiro sintoma de uma suposta abertura cultural e do retorno de uma versão folclorizada do género, tal como era conhecido antes da independência. De facto, segundo o historiador moçambicano Rui Laranjeira, a OMSM contribuiu para o primeiro ressurgimento da marrabenta após a sua desqualificação durante a liderança de Machel (Laranjeira Reference Laranjeira2014).
Em 1988, o grupo gravou dois álbuns no Shed Studios em Harare (Zimbabwe), que foram posteriormente misturados no Aosis Studios em Londres – “Independance” (1988) e o postumamente publicado “Piquenique” (1996). Ambos os discos foram distribuídos pela etiqueta de Aurélio Le Bon – Mapiko Discovideo/Piranha – e foram catalogados como “World Music/Moçambique” (Figura 1). Quando perguntei à cantora Mingas porque decidiram gravar no Zimbabwe e não nos estúdios da Rádio Moçambique, a resposta foi perentória:
“Porque já não se produziam na altura discos em Moçambique. Poderíamos ter gravado cá [Maputo] em fita magnética e enviado para fora, mas eu acho que as pessoas que estavam à frente disso, o próprio Le Bon, deve ter preferido que fosse lá [em Harare], porque lá a tecnologia estava mais avançada do que aqui. Por exemplo, já tinham mesas de mistura com 24 pistas, e então isso seria já uma grande evolução em relação ao que tínhamos cá”Footnote 16.
Apesar de este projeto ter como principal objetivo a promoção e a revitalização da música moçambicana, a verdade é que os dois discos nunca chegaram a ser editados em Moçambique. Esta peculiar situação pode ser explicada pelo facto de a indústria fonográfica se encontrar num estado letárgico, principalmente nos últimos anos da década de 1980. Por outro lado, mesmo que fosse encontrada uma forma legal de publicar o disco em Moçambique, a inexistência de uma lei que salvaguardasse os direitos de autor fazia deste um projeto comercialmente inviável na sua terra natal. Por essa razão, e segundo Aurélio Le Bon, o grupo, os artistas integrantes e as suas canções foram registadas numa Sociedade de Autores na República Federal Alemã, e os discos acabaram por ser editados apenas na Europa e, excecionalmente, no Zimbabwe (neste caso através da etiqueta Gramma Records, Warner Bros)Footnote 17. Neste sentido, a única forma que os moçambicanos teriam para ouvir este repertório seria através da Rádio Moçambique e de algumas gravações audiovisuais feitas pela TVEFootnote 18.
Em termos literários, o primeiro disco apresenta um leque abrangente de temáticas: inclui canções sobre amor (“Alizandro”), questões conjugais (“Nwahulwana”, “Sapateiro” e “Tsiketa Kuni Barassara”), e temáticas festivas (“Elisa Gomara Saia”, “Marozana”, “Parabéns”), constituindo estas últimas uma grande novidade, sobretudo em comparação com outros discos moçambicanos publicados nos dez anos precedentes. A ausência de referências políticas e a insistência em temáticas festivas não passaram despercebidas, sobretudo numa época em que Moçambique seria internacionalmente reconhecido como um dos países mais pobres do mundo. De facto, tal decisão contrastava com a produção fonográfica até então publicada domesticamente pela etiqueta NGOMAFootnote 19, sobretudo no que se reporta ao seu conteúdo poético. Por exemplo, enquanto algumas músicas elogiavam o papel da FRELIMO na construção de uma ideia de nação moçambicana, outras concentravam-se em questões sociais emergentes, tais como o abandono de lares, a delinquência e o desinteresse pela escola, elevando-as para uma causa didática e teleológica de construção da nação (Freitas Reference Freitas2023). Mingas, uma das cantoras e dançarinas do grupo, afirmou que a mudança no conteúdo lírico fazia parte de uma estratégia deliberada com vista a promover uma visão distinta de Moçambique para o público internacional:
“Nós queríamos projetar a Marrabenta como uma música alegre, com o propósito de promover uma visão positiva de lá de casa… isto porque na altura só se falava em guerras […] Quando nós nos estreámos, as pessoas que nos viram ficaram maravilhadas… porque a imagem que passava lá para fora era que Moçambique era só guerra. Ficávamos deprimidos. Então a Orchestra Marrabenta não só mudou a forma como as pessoas olhavam para Moçambique – pelo menos nós tentávamos transmitir uma outra ideia de Moçambique –, mas também serviu para trazer algum alento ao nível interno. Era tipo ‘meu deus, isto é tão bonito, afinal ainda podemos fazer coisas bonitas”Footnote 20.
O discurso explicativo sobre a Orchestra, escrito em língua inglesa na contracapa do disco, apresenta a Marrabenta como um produto tardio da independência de Moçambique, ideia salientada na própria capa com o slogan samoriano “A Luta Continua!”. São ainda referidas inúmeras influências, apresentando esta Marrabenta como o resultado de uma mescla que partia de um ritmo rural Majika, que foi posteriormente levado para a área urbana, tendo aí sido transformado com base em ritmos da música Soul, da balada portuguesa e mediterrânica, de riffs de guitarra do Congo, passando pela percussão brasileira, ritmo Reggae nas guitarras e riffs de sopros de metal ao estilo cubano.
Ao contrário do que acontecera com a maioria dos produtos desse período enquadrados na categoria World Music, a conceção e o discurso em torno da OMSM e da Marrabenta não foram fabricados e controlados por produtores estrangeiros, mas sim por empresários moçambicanos. Foi Aurélio Le Bon quem decidiu como promover este grupo no estrangeiro, incluindo as suas sonoridades, apresentação geral, bem como a história por detrás dos géneros musicais que apresentavam. Talvez por essa razão o grupo tenha optado por não ser comercializado como um produto autêntico, como seria o discurso predominante em torno dos repertórios de World Music, focando-se, em alternativa, numa ideia de crioulização e de mistura de influências, promovendo assim a Marrabenta como um género cosmopolita. Ao abraçar essas características crioulas, o grupo promovia, simultaneamente, uma nova política sonora para Moçambique, bem longe da música tradicional, que teria sido o campo musical mais favorecido durante a presidência de Samora Machel (1975-1986)Footnote 21. Este projeto representou uma estratégica mudança de tom que não só foi aceite, como poderá ter sido fomentada pelo novo governo de Chissano. Importa esclarecer que, dada a sua estrutura verticalizada e centralizada, o próprio governo (através do Ministério da Informação) teria de aprovar a integração dos músicos da rádio na OMSM, incluindo a sua ausência prolongada para efeitos de digressão. Assim, tudo indica que a FRELIMO aproveitou esta primeira experiência na senda da World Music para promover uma imagem diferente – alegre e festiva – de Moçambique, que contrariava a visão de um país miserável e triste. Depois de várias atuações pela EuropaFootnote 22 e MoçambiqueFootnote 23, e de uma segunda digressão em 1988 que passou por Portugal, Cabo Verde, Dinamarca, Holanda e Inglaterra, os membros do Grupo RM acabaram por se desvincular do projeto em meados de 1989 na sequência de desentendimentos entre músicos e empresáriosFootnote 24. O grupo acabou por se desintegrar dois anos depoisFootnote 25.
2. A história de uma canção com duas versões: “Baila Maria” do Grupo RM (Amoya) (1990)
“Quando um conjunto ganha um ‘Descobertas’, os promotores dão-lhe o prémio monetário que merece, a bolsa de estudos musicais e até lhe conferem o direito de gravar um disco ‘LP’. Estas ‘coisas’ todas estão por conta do ‘bolso’ deles [produtores], inclusive as movimentações que esse mesmo conjunto vencedor tem de efectuar. Não vai haver inconvenientes. Temos de ir [para Guiné-Conacri].” – Chico António, Tempo, 21/10/1990Footnote 26.
Depois de se desvincular da Orchestra Marrabenta, o Grupo RM voltou ao trabalho em Maputo, incorporando novos músicos dissidentes da Orchestra, enquanto outros saíram. A adição mais notável foi a de Mingas, que se tornou na primeira mulher a pertencer formalmente ao grupo de música ligeira estatal, e Chico António, que assumiu a direção artística do grupo (Figura 2). Em 1990, Chico António compôs a canção “Baila Maria” em coautoria com Mingas, que se tornou o maior sucesso do Grupo quer em Moçambique, quer no estrangeiro, ao ter vencido o Festival Grand Prix Découvertes 90 promovido pela Radio France Internationale, cuja cerimónia se realizou na Guiné-ConacriFootnote 27.
“Baila Maria” é uma canção com características particulares quando comparada com outras canções da época. Numa primeira audição, a primeira grande diferença diz respeito à sua longa duração – cerca de oito minutos – e aos ritmos que nela figuram, inspirados no TufoFootnote 28 e MapikoFootnote 29, danças tradicionais do Norte do país. Existem duas versões: a original gravada na Rádio Moçambique e a versão gravada em França para o disco incluído no prémio do concurso. Seguidamente, apresentarei uma análise detalhada da versão original, que designo por “versão do Grupo RM”, seguida das principais diferenças em relação à versão gravada em França, aqui designada por “versão Amoya”, nome pelo qual o grupo foi difundido no estrangeiro. No final desta secção, justaporei ambas as versões aos conceitos de schizophonia/schizmogenesis de Feld em relação aos discursos sobre a World Music e a World Beat.
Apesar desta canção poder ser dividida em três grandes secções, esta estrutura tripartida não obedece a nenhum formato pré-estabelecido, tal como o formato canção, já que parece ser o resultado da junção de três canções diferentes, dando-lhe assim um carácter quase episódico e grandíloquo. Nas palavras do próprio Chico António, trata-se de uma viagem:
Eu escutei muito Fela Kuti, e ele tinha músicas muito longas, com mais de 20 minutos […]. Para mim, um trabalho deste tipo é como se fosse viagem na estrada. Quando andas de carro ou até mesmo a pé, as imagens estão em constante mudança e nada é igual. Foi a inspiração para esta cançãoFootnote 30.
A faixa inicia-se com um arpejo na guitarra com as notas Lá Ré# Sol Si, num ritmo inspirado pelo som do mar e pela dança das mulheres no Tufo, tal como confirmado por Chico AntónioFootnote 31. É apresentado, nesta secção, o primeiro motivo melódico, caracterizado por pequenos slides e ligados na guitarra elétrica (exemplo musical 1)Footnote 32:
Seguidamente, a guitarra baixo enfatiza a nota Lá, alternando, a partir dos 00m35s, as notas Lá e Mi. É na relação de todas estas notas que encontramos a segunda surpresa desta faixa: esta não segue uma harmonia tonal, mas sim uma organização modal, particularmente notória pela ausência de graus sensíveis em relação aos dois pontos de repouso de Mi e Lá (ou seja, Ré# e Sol#, respetivamente). De acordo com Chico António, em entrevista, os músicos com quem costumava tocar esta canção tinham a mesma dificuldade: “Uns diziam isto tá em Lá, outros diziam tá em Mi”, contudo o autor explica que no processo de composição não pensou necessariamente em nenhuma tonalidade específica: fez como lhe soava bem Footnote 33.
Aos 35 segundos inicia-se a secção A com a entrada da bateria, que imprime o ritmo inicial, seguida de um alternar de versos cantados em xichangana por Chico António e Mingas. A letra pode ser resumida a uma declaração amorosa – ou de engate, nas palavras de Chico António – entre um homem (não identificado) e uma mulher com o nome Maria. O homem (Chico António) diz que procura estabilizar e repousar a seu lado; ela (Mingas), por sua vez, responde afirmativamente ao pedido do seu pretendente, referindo que se sente bem a seu lado e que vislumbra um futuro auspicioso para ambos. Os versos são alternados com a frase em coro (excerto 2), que pode ser traduzida por “abre o teu coração, tudo se organizará” (ou tudo ficará bem). A alternância de texto entre os dois interlocutores, em discurso direto, constituiu uma novidade no panorama musical moçambicano, já que, até então, eram raros duetos musicais em Moçambique, principalmente entre um homem e uma mulher.
Finalizada a primeira parte, surge uma secção de passagem a partir dos 03m54s, que serve de ponte entre as secções A e B, caracterizada por um riff de metais (saxofone e trompete), com um ritmo sincopado que acentua os tempos fracos. Depois de repetido quatro vezes, o tema não retorna. Como veremos adiante, apesar de ser usado nesta versão como material de passagem, este tema terá um destaque mais acentuado na versão Amoya:
A secção B inicia-se aos 04m05s, caracterizando-se por um adensamento da textura musical através da adição de instrumentos de percussão com uma mistura de ritmos, entre os quais os do Mapiko. Simultaneamente, Chico António é acompanhado em uníssono por um coro de vozes masculinas, repetindo a seguinte frase melódica, com uma letra que descreve os dotes de Maria, entre os quais se pode ouvir que ela é bonita e organizada:
Finalmente, a secção C apresenta-nos o refrão da canção, desta vez em português – só aos 05m29s –, tocado primeiramente pelo saxofone e trompete, seguindo-se a alternância entre o coro e os instrumentos de sopro. A letra faz referência, uma vez mais, à temática da felicidade: “Baila Maria oye ye, alegria é coisa mais linda da vida” (exemplo musical 5). A canção finaliza-se com um fade-out, já próximo dos oito minutos. A tabela 1 (anexo) resume a análise estrutural da versão do Grupo RM.
O prémio do Descobertas/90 incluiu 20 mil francos e a gravação de um álbum em FrançaFootnote 34. O disco “Cineta” foi editado não com o nome Grupo RM, mas sim Amoya, escolhido por Chico António perante as reservas levantadas pelos produtores pelo facto de o acrónimo RM poder vir a ser confundido com o grupo norte-americano R.E.M (Figura 3). O disco inclui oito faixas, entre as quais uma nova versão de “Baila Maria”Footnote 35.
São várias as diferenças entre a versão do Grupo RM e a versão Amoya, apesar de a estrutura musical se manter mais ou menos intacta. A primeira mudança diz respeito à introdução: na segunda versão não se ouvem guitarras e o arpejo inspirado no ritmo do Tufo é tocado pelo sintetizador; outra mudança diz respeito à total ausência do riff introdutório. A primeira secção (A) inicia-se com uma textura muito simplificada, ganhando complexidade através da adição dos diferentes instrumentos conforme a sucessão dos versos (primeiro o baixo elétrico, depois os pratos e o bombo, mais tarde a caixa na bateria, e assim sucessivamente). O excerto 2 vê a sua frequência cortada pela metade, passando a ser cantado a uma só voz, já que as harmonias foram também suprimidas. Aos 02m15s surge o tema 3 da ponte sobre um ritmo muito mais simples do que o original, substituindo os ritmos de Mapiko por um toque regular de caixa da bateria, por sua vez ausente da primeira versão. Todavia, ao contrário do que acontece na versão do Grupo RM, este tema adquire um protagonismo central, sendo praticamente repetido até ao fim da canção. Aos 03m10s, os temas 2 e 3 são justapostos, juntando-se em seguida o refrão (tema 5) aos 03m25s, com a novidade de estar harmonizado em terceiras. A partir desse momento, os motivos e temas da canção são apresentados numa espécie de pastiche ou colagem, até ao momento em que se faz um fade-out, já a caminho dos cinco minutos.
Tal como a análise estrutural da versão Amoya confirma (Tabela 2 em anexo), as conceções musicais e influências da gravação original foram essencialmente diluídas na nova versão. A este respeito, tive a oportunidade de entrevistar Chico António em Maputo, aproveitando a ocasião para discutir a minha análise de ambas as versões da canção. A sua resposta foi particularmente reveladora em relação ao processo de gravação da versão Amoya:
Chico António: Na versão do Grupo RM, fomos nós e o Américo Xavier que gravámos e decidimos o resultado final. Em França [versão Amoya], foram eles que decidiram como fazer. Eu enviei a música quinze dias antes de chegarmos e foi parar a um tipo que é muito bom, um teclista que acabou por fazer os arranjos segundo a sua sensibilidade. Na verdade, a música é longa, tinha oito minutos, então os tipos esquartejaram aquilo de forma que ficasse num produto de cinco minutos.
Marco Roque de Freitas: Mas começaram a preparar as mudanças antes de vocês lá chegarem?
CA: Quando cheguei já tinham feito uma maqueta, já tinha um esqueleto feito da nova versão.
MRF: E o que achou?
CA: Sinceramente, achei que estava bom. Porque a diferença, neste caso, é fazeres uma coisa que possas vender, porque o objetivo da editora era o de recuperar um pouco do dinheiro do prémio e fazer com que o CD nos levasse mais longe, ou seja, tiveram de ‘modernizar’ aquilo ali. […] Nós aqui [em Maputo] gravamos como se fosse ao vivo, todos ao mesmo tempo; lá gravamos com ‘clique’ e em separados. Eles tinham o seu próprio naipe de instrumentistas: tinham trombone, saxofone, trompetes; eu nem sequer toquei trompete. Os músicos que foram comigo não estavam habituados àquela forma de gravar em ‘clique’. Até o baterista [Zeca Tcheco] teve dificuldades.
MRF: Portanto, vocês foram transformados num produto…
CA: [confirma abanando a cabeça] Eu já estava entalado com os meus, que não reconheciam aquela cena que os franceses estavam a fazer. Eles [colegas do grupo] reagiram muito mal. Arranjei inimizades e tudo, e das grossas. Tanto que quando voltámos já nem dava para a gente se falar… enfim. Por outro lado, estava também entalado com os franceses, que eram quem nos ia pagar a ‘mola’. Não é brincadeira. […] Sabes como é, sabes como são as produtoras…
MRF: Mas sentiu, de alguma forma, que o seu trabalho foi desrespeitado? Ou seja, como é que se sentiu na altura? E agora, olhando para trás, como é que se sente?
CA: Não acho que tenha sido desrespeitado. Vejo como se fossem versões; e cada um ouve a que quiser. Tem uma moça agora em Portugal que fez uma versão também. Para mim, quantas mais versões aparecerem, melhor. Uma pessoa não pode ficar fechada. Para mim é valioso que cada um possa ver a ‘Baila Maria’ à sua maneira. É assim que a música continua a se mover e a ser dinâmica.
MRF: Qual a versão que gosta mais?
CA: Eu gosto da minha. Eu, pessoalmente, prefiro a primeiraFootnote 36.
A conversa acima transcrita revela a ambivalência da situação no que se reporta às expectativas dos músicos e a realidade, bem como os vários inconvenientes que ocorreram durante o processo de gravação em França. Embora esta faixa (assim como o disco onde foi incluída) possa ser analisada como uma experiência concebida para promover uma imagem alegre de Moçambique (na mesma linha do que OMSM teria feito anteriormente), o processo de produção revelou-se um autêntico pesadelo para os músicos envolvidos, ainda que o líder da banda o tenha visto como o resultado de um compromisso entre a sua criatividade e as exigências dos produtores.
Tendo em conta as supracitadas contingências, as duas versões de “Baila Maria” podem ser revistas à luz da análise de Steven Feld apresentada na introdução: ambas são representativas de uma certa dualidade entre os conceitos de World Music e World Beat. A versão do Grupo RM assemelha-se a uma apresentação ao vivo, próxima daquilo que constituiria a intenção original do grupo. A versão Amoya apresenta-se, por sua vez, como um produto de estúdio (ou de clique, como refere António) que se afasta do ideal performativo que seria expectável do Grupo. A própria justaposição de temas, cantados pelas mesmas vozes, é reveladora de uma ideia de montagem ou colagem de estúdio que não seria reproduzível ao vivo (os solos de trompete estariam justapostos com dois temas, todos eles cantados e tocados por Chico António). Por outro lado, a simplificação da percussão distancia a versão Amoya dos ritmos tradicionais que lhe serviram de inspiração. Em suma, enquanto a primeira versão é representativa das opções do Grupo RM em situação de performance ao vivo – estando assim próxima do conceito World Music, frequentemente adjetivado como verdadeiro, tradicional, real e autêntico – a segunda versão é uma criação de estúdio, definida pelos produtores com vista a promover e a comercializar um produto musical supostamente adaptado a um ouvinte que estaria longe do seu contexto original. A justaposição de temas aproxima-a, deste modo, do conceito World Beat, devido às suas características híbridas e sincréticas. Por fim, é relevante notar que a versão Amoya nunca foi comercializada no país, com a exceção de algumas cassetes disponibilizadas pela Rádio Moçambique. Por conseguinte, a versão do Grupo RM continuou a ser a mais conhecida entre os moçambicanos.
3. Abraçando a realidade: os casos de Eyuphuro (1990) e Ghorwane (1993)
“For most people, Mozambique conjures up images of tragedy: war, famine, and millions of refugees living on food aid. The other side of this young southern African nation, rich in art and culture, is hardly ever seen.” – Real World Records, Eyuphuro, “Mama Mosambiki”Footnote 37
Durante os primeiros anos da década de 1990, existiram pelo menos dois outros casos de internacionalização de música moçambicana, contudo através da etiqueta Real World (não estando, portanto, relacionada com a Rádio Moçambique). Fundada em 1989 pelo Festival WOMAD, e pelo músico Peter Gabriel, com o propósito de providenciar acesso aos artistas de todo o mundo a boas condições de gravação, a etiqueta Real World terá sido um dos mais importantes vetores para a promoção de música extraeuropeia em geral, e africana em particular. Publicado em 1990, o disco “Mama Mosambiki”Footnote 38 do Grupo Eyuphuro foi um dos primeiros a ser publicado no âmbito desta etiquetaFootnote 39.
Os membros do grupo são originários da Ilha de Moçambique, na província de Nampula, a 2020 quilómetros da capital MaputoFootnote 40. Um dos meus interlocutores, o produtor Artur Garrido Júnior, explicou-me que, devido ao facto dos seus membros não estarem familiarizados com as complexidades das indústrias da música, eles acabaram vítimas de fraude quando vieram pela primeira vez a Maputo:
“O grupo Eyuphuro foi convidado por um empresário a vir a Maputo fazer uns espetáculos. Só um deles é que era músico de profissão… A Zena Bacar era camponesa, um outro ajudante de pedreiro, o outro ajudante de carpinteiro, o outro nem sei o que fazia… Bom, o grupo veio a Maputo, fez um espetáculo e depois os seus elementos ficam abandonados. Seria a mesma coisa que eu pegar num tipo daqui [Maputo] e largá-lo em Nova Iorque. Então eu apanhei os Eyuphuro a dormirem num banco ali no Jardim Tunduru. O meu pai, na altura, tinha uma residencial e eu fui falar com ele. […] E levamo-los para o estúdio da EME. […] Na altura, o secretário de Estado da Cultura, que era o Luís Bernardo Honwana ouviu […] e decidiu levá-los para a Semana de Moçambique na Suécia. […]. Os suecos ficaram doidos com aquele tipo de música. […] Dias depois, a primeira página do jornal lá na Suécia anunciou a Zena Bacar como uma das melhores cantoras de Jazz que tinha passado naquele ano na Suécia. E eu pensei, bem, quem sou eu para dizer que não?”Footnote 41
Este depoimento confirma que a internacionalização seria a única alternativa para a maioria dos grupos moçambicanos. De facto, o grupo Eyuphuro só se tornou uma história de sucesso devido à intervenção oportuna de produtores locais e à sua imediata integração no circuito da World Music. Eyuphuro é apresentado pela Real World como o resultado de uma mistura de influências africanas na voz, com ritmos árabes na percussão e ritmos de influência portuguesa na guitarra acústica. As letras das canções são cantadas em língua emakhuwa, abordando assuntos tais como o divórcio (“Nifungo”), o abandono do lar (“Mwanuni”), a crítica ao machismo e o lugar da mulher na sociedade (“Kihiyeny” e “Oh Mama”), as relações conjugais (“Akatswela” e “We Awaka”), bem como o amor de uma mãe para com os seus filhos (“Nuno Maalani”). Finalmente, a canção “Samukhela” fala de nostalgia e da vontade de emigrar para fora do país, acrescentando, porém, que “quando chegares lá sentirás a falta da tua mãe [África]”.
Este álbum é particularmente notável porque reflete abertamente sobre as dificuldades de ser mulher em Moçambique durante o período socialista, uma vez que a perspetiva da mulher estava ausente da maioria das canções publicadas pela etiqueta nacional NGOMA, tirando algumas exceções notavelmente cantadas por homens, o que, por sua vez, tornaria a sua ausência ainda mais evidente (Freitas Reference Freitas2023). Neste sentido, Zena Bacar representa um caso raro de uma artista mulher que teve sucesso em Moçambique, apesar de tal reconhecimento ter vindo inicialmente do estrangeiro (Figura 4).
O álbum “Majurugenta” do grupo Ghorwane foi gravado em 1991, tendo sido publicado em 1993Footnote 42. Sonoramente, o grupo tem como base ritmos tradicionais, tais como o Xigubo, Mapiko, Tufo e a Marrabenta, porém com um instrumentário associado à música ligeiraFootnote 43. No que diz respeito às temáticas abordadas, este disco apresenta fortes críticas à sociedade moçambicana: a canção “Muhimba” aborda as consequências da guerra e da mudança de valores culturais; a canção “Xai-xai” versa sobre a migração para as minas da África do Sul; “Mavabwyi” interpela a política de saúde pública, designadamente a falta de condições para tratar os pacientes nos hospitais; “Sathuma” alerta para o aproveitamento de todos os objetos, lembrando que o que não serve para alguns pode servir para outros; “Terehumba” fala de uma jovem que está mais interessada em namorar do que em estudar, acabando por engravidar; as canções “Majurugenta” e “Matarlatanta” dedicam-se a lembrar estilos de roupa populares entre as décadas de 1930-50 e de uma saia particular muito comum nas décadas de 1950 e 60, respetivamente. “Buluku”, por sua vez, reflete sobre a dificuldade em adquirir roupas depois da independência, acrescentando que algumas mulheres conseguiam boas roupas através da prostituição com clientes estrangeiros; finalmente, “Akuhanha” descreve as dificuldades que o país atravessava na época (Figura 5).
O texto de apresentação do disco foca-se abertamente nas consequências da guerra e na penúria que se vivia em Maputo nos últimos anos do conflito armado. É descrito um cenário desolador, com as lojas sem mantimentos e com crianças órfãs a pedir dinheiro nas ruas. A reflexão sobre o estatuto social dos músicos e a falta de condições para o desenvolvimento de uma carreira musical de sucesso em Moçambique é, também, surpreendentemente direta:
“Ghorwane rehearse and play on borrowed equipment and hustle free rehearsal time in a Maputo recording studio. […] No government enterprise schemes; sponsorship or record company advances here. Rehearsal facilities were far from perfect. Roberto gives an example: “it happened often and still happens that we get electric shocks from the microphones, so by experience we always maintain a certain distance!”. […] There are no pop stars in Mozambique in the western sense – dripping with jewelry, expensive cars, houses and groupies. Ghorwane commands respect but nobody has cash in Mozambique. They couldn’t sustain superstar lifestyles of their Western musicians even if they wanted to. […] Ghorwane has recorded over thirty songs at Radio Mozambique’s 16-track studio up until independence in 1975. […] The station records local bands, broadcasts the tapes the compiles the local “hit parade” on the strength of listener response. It’s no place for a band to get rich”Footnote 44.
Esta citação representa o novo discurso neoliberal em vigor no início da década de 1990, onde valores como abertura, democracia e transparência seriam fomentados e encorajados. Neste sentido, estes dois discos representam uma clara mudança de discurso: as perspetivas idílicas e controladas de outrora transformaram-se em posições realistas e sinceras sobre a vida quotidiana dos moçambicanos. Na verdade, os textos que acompanham o disco de Ghorwane vão mais longe ao descreverem o violento assassinato do seu saxofonista e compositor, Zeca Alage, espancado até à morte na cidade de Maputo em abril de 1993, poucos meses antes do lançamento do disco. Assuntos tais como insegurança, pobreza, fome e guerra eram, assim, assumidos como pano de fundo para o álbum, enquanto o fracasso da experiência socialista seria abertamente arrogado a poucos meses das primeiras eleições multipartidárias.
Poslúdio: uma alternativa viável?
“Recognizing that the commercial value of world music lies in how people read it, industry personnel ultimately create a product that balances these visions in ways that sustain their relationships with artists and maintains their positions as knowledgeable and trustworthy mediators and curators of ‘authentic’ music in the eyes of European and American consumers”
(Whitmore Reference Whitmore2016:331).Orchestra Marrabenta Star de Moçambique, Amoya, Eyuphuro e Ghorwane foram casos excecionais de sucesso fomentados por investimento nacional privado ou estrangeiro, através da empresa Movimento, da Radio France Internationale, ou da editora “Real World”. Estes projetos tinham um denominador comum: a reação à guerra e aos problemas dela decorrentes, fosse através do seu propositado ofuscamento – tal como fez a Orchestra Marrabenta Star de Moçambique – ou da denúncia das suas consequências, como fez o grupo Ghorwane. No entanto, podemos afirmar que estas publicações tiveram uma reduzida eficácia ao nível doméstico visto que nem sequer estiveram acessíveis em solo moçambicano. Afinal, tal como referido no supracitado excerto de Whitmore, estes foram produtos destinados a satisfazer os consumidores ocidentais ou, pelo menos, o que os agentes das indústrias acreditavam ser as expetativas desses mesmos consumidores. Por conseguinte, estas publicações enquadram-se plenamente no conceito de música nacionalista postulado por Bohlman, já que se trata, no seu âmago, de práticas produzidas com o propósito cimeiro de representação internacional do país (Reference Bohlman2011:59).
Este artigo também demonstrou que a representação sonora de Moçambique para o mercado internacional mudou consideravelmente ao longo destes oito anos de transição (1987-1994). A conceção da World Music enquanto categoria descritiva abrangente coincidiu com a ascensão de um novo presidente e a aplicação de reformas económicas em Moçambique, entre as quais aquelas decorrentes de um rigoroso plano de reestruturação encabeçado pelo FMI, que significou, entre outros aspetos, abandonar um regime de teor marxista-leninista em prol de outro, de tipo liberal e capitalista. Assim, ao substituir as temáticas politicamente engajadas por tópicos aparentemente inócuos tais como festa e alegria, a OMSM e o Grupo RM (Amoya) desempenharam um papel decisivo para sinalizar as reformas culturais e económicas em curso, num contexto também ele enredado pelas negociações com vista a pôr termo à guerra entre a FRELIMO e a RENAMO. A música foi, portanto, instrumentalizada como símbolo das reformas estatais em curso, e através desta, uma reconfiguração sonora da nação estava em marcha. No caso da OMSM, a categoria World Music constituiu um meio viável para fazer propaganda política internacionalmente, ainda que, dado o carácter alegre e festivo dos temas abordados, esta fosse camuflada como apolítica.
Embora tivesse sido projetada com o mesmo objetivo da OMSM, a experiência do Grupo RM (Amoya) trouxe vários problemas e imprevistos. Sobre este caso, foi dada especial atenção à canção “Baila Maria”, não só devido aos complexos meandros que enredaram a sua produção, mas também porque reproduz o modelo clássico presente em muitos estudos sobre World Music referidos na secção introdutória deste artigo, espelhando uma clara oposição entre os interesses dos músicos locais e a intenção dos produtores internacionais. De facto, as alterações aplicadas à canção não tiveram em consideração as escolhas e contribuições criativas dos músicos. Para além de terem perdido o controlo criativo e de terem abdicado do nome do grupo, foi-lhes também retirado o direito de tocarem na sua própria gravação. Por conseguinte, as duas versões de “Baila Maria” também podem ser avaliadas com base na justaposição das palavras com prefixo schi- apresentadas por Feld, revelando uma certa dualidade entre os conceitos de World Music e World Beat. Essa dualidade sublinha, por sua vez, valores contrastantes de autenticidade versus artificialidade, seriedade versus trivialidade, e verdade versus falsidade.
Todavia, com o passar do tempo, a FRELIMO perdeu o controlo da narrativa, como evidenciado pela dura contextualização apresentada nos discos da Real World. Abertura, transparência e reconciliação tornaram-se valores primordiais e, como tal, as consequências da guerra e as injustiças sociais relacionadas com papel da mulher na sociedade moçambicana passaram a ser abertamente expressas nas letras das músicas e assumidas como enquadramento contextual para os discos de Eyuphuro e Ghorwane. Parece, portanto, ter havido uma mudança de uma política estatal que mascarava os problemas do país, para uma política neoliberal disposta a enfatizar esses mesmos problemas com o propósito de descredibilizar a experiência socialista em Moçambique.
Em que medida os músicos se identificaram com estas posições governamentais? Na verdade, tal não era uma possibilidade nos dois primeiros casos: os membros do Grupo RM não tinham escolha senão seguir as diretrizes governamentais, pois eram funcionários da estação estatal de rádio e do Ministério da Informação. Por outro lado, embora a OMSM fosse financiada por uma empresa privada, o seu proprietário – Aurélio Le Bon – era um aguerrido frelimista e um agente-chave para a aplicação da agenda governamental durante o período socialista, uma prerrogativa que ele manteve após fundar a sua empresa e editora. Em qualquer das situações, Mingas e Chico António, em entrevista, asseguraram que estavam satisfeitos em promover uma imagem positiva do país, não obstante a devastação causada pela guerra civil. No que se reporta aos grupos publicados através da etiqueta Real World, não existem dúvidas de que estes usaram esta plataforma internacional para criticar a situação letárgica de Moçambique, especialmente no caso de Ghorwane. No entanto, é relevante notar que no momento do lançamento do seu álbum (1993), o país já estava a vivenciar a transição para um sistema multipartidário, evidenciada pela marcação das primeiras eleições gerais. Portanto, pode-se argumentar que naquela época seria relativamente seguro abordar tais inquietações, especialmente porque a FRELIMO também já reconhecera as limitações das suas estratégias passadas, expressando a necessidade de uma nova abordagem para o futuro.
Posto isto, importa responder à questão que dá nome a esta secção: terá a World Music sido uma alternativa viável à letargia que sancionava as indústrias da música em Moçambique? Do ponto de vista económico, a resposta é francamente positiva, contudo, do ponto de vista criativo, este artigo revelou muitas – e em muitos casos sérias – limitações deste processo. Se, por um lado, estas experiências funcionaram como bolhas de oxigénio para muitos músicos (especialmente no que diz respeito ao pagamento de direitos de autor e de outros direitos conexos), por outro, foi através delas que alguns músicos moçambicanos estiveram em contacto, em primeira mão, com verdadeiras máquinas de produção que lhes retirariam qualquer poder de decisão sobre a sua produção artística. No final, os artistas tiveram de aprender a lidar com as duras contradições da World Music, pois esta permaneceu, durante muitos anos, como o único caminho possível para uma carreira artística de sucesso.
Appendix