Hostname: page-component-586b7cd67f-r5fsc Total loading time: 0 Render date: 2024-11-22T14:46:10.063Z Has data issue: false hasContentIssue false

Shawn Michael Austin, Colonial Kinship: Guaraní, Spaniards, and Africans in Paraguay University of New Mexico Press, 2020, pp. xvi + 365

Review products

Shawn Michael Austin, Colonial Kinship: Guaraní, Spaniards, and Africans in Paraguay University of New Mexico Press, 2020, pp. xvi + 365

Published online by Cambridge University Press:  30 May 2024

Rafael Fernandes Mendes Júnior*
Affiliation:
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Rights & Permissions [Opens in a new window]

Abstract

Type
Reviews
Copyright
Copyright © The Author(s), 2024. Published by Cambridge University Press

‘Ele é nosso parente.’ Proferida no curso de um processo civil, em 1649, por um homem guarani, esta frase é o fio condutor de uma questão central para Shawn Michael Austin descrever e analisar as relações que marcaram espanhóis e Guarani no Paraguai nos séculos XVI e XVII. Como escapar da dicotomia senhor/escravo e não reduzir aquela experiência colonial a um modelo universal de escravidão que ignora o sentido desta frase que atravessa a análise histórico-antropológica de maneira arguta?

Professor de história na universidade de Arkansas, Austin apresenta uma análise cuja interface teórico-conceitual nesses campos de saberes permite-lhe interpretar as relações entre colonizadores e Guarani por meio da chave do parentesco, expresso por meio de noções como cuidado, piedade e amor.

Analisando um volume denso de processos judiciais, Austin elabora uma etnografia das relações de parentesco estabelecidas desde os primórdios da Conquista entre espanhóis e indígenas. Revela como o cuñadasgo/tovaja (categoria indígena) serviu de idioma às relações estabelecidas com aqueles colonizadores.

Colonial Kinship privilegia aqueles grupos guarani na região de Asunción, alheios às reduções católicas. O livro está dividido em três partes: Inícios, Desafios e Comunidades. Na primeira, o capítulo inicial ‘Cuñadasgo e conquistadores polígamos’ apresenta as questões a serem desenvolvidas, descreve aspectos da organização social dos grupos guarani e conclui que a centralidade dessa organização social se assentava na constituição de grupos de parentesco articulados por um líder que reunia em torno de si parentes consanguíneos e afins em que a poliginia e a troca de mulheres eram conspícuas.

Estes dois fenômenos permitem compreender o acolhimento dos espanhóis pelos Guarani. Segundo Austin, nas fontes documentais não faltam evidências das inúmeras mulheres dadas pelos Guarani aos espanhóis. Trocando mulheres por outros bens e transformando estrangeiros em afins, os Guarani inseriram os espanhóis numa rede de reciprocidade e os transformaram em cunhados. Aspecto crucial para se compreender que eram ‘[os] dons e a troca de bens materiais por meio do cuñadasgo a característica final que a distingue da escravidão’ (p. 38).

‘Institucionalizando o parentesco’ analisa o surgimento de uma geração criolla e a consolidação das relações de afinidade entre indígenas e colonizadores. Analisa também a instituição do sistema de encomiendas e o seu impacto sobre as relações forjadas por meio do parentesco. Argumenta que devido ao estabelecimento prévio das relações de parentesco, a encomienda não constituiu uma ruptura das práticas do cuñadasgo. Instaurado em 1556, e limitado a um número reduzido de indígenas, esse sistema, desagradou àqueles espanhóis que se viram excluídos ou mal contemplados pelo número de encomendados.

Quanto aos litígios, Austin destaca a habilidade de muitos homens guarani em buscar reparações acessando os meios legais instaurados pelo sistema de encomiendas e legitimado pelas práticas do parentesco. Isto lhe permite analisar o encontro colonial como um ‘processo político transcultural’ (p. 59).

O capítulo aborda ainda as instalações das reduções jesuítas e franciscanas e a promulgação das ordenanças de Alfaro. As ordens religiosas marcaram políticas distintas nas suas relações com a Coroa e a administração colonial, bem como foram centros de fornecimento de recursos humanos e bens nas diversas campanhas bélicas conduzidas contra seus inimigos.

Quanto às ordenanças de Alfaro, insólita pareceu a recusa indígena de regular as suas relações com os espanhóis por meio de salários e a formalização das condições de trabalho. Porém, Austin evidencia a opção indígena de pautar suas relações através do idioma do parentesco, excluindo o modelo hispano-europeu de patronagem-vassalagem (p. 80).

‘Fronteiras incorporadas’. A insatisfação de muitos espanhóis com as encomiendas fez com que estes desbravassem o Leste – o Guairá – para ampliar suas possessões. Aqui, Austin mostra, urgia aparentar e encomiendar a um só golpe. A continuidade do parentesco tornou-se objeto de negociações constantes envolvendo disputas internas nos grupos indígenas, ou destes com os espanhóis. O Guairá foi também o berço da experiência jesuítica no Paraguai. Em que os jesuítas souberam aproveitar-se das guerras intergrupais para reduzir e obter lealdade dos Guarani (p. 102).

Território limítrofe à colônia do Brasil, foi alvo de incursões oriundas de São Paulo: as bandeiras. Para Austin, as relações entre troca, parentesco, guerra e predação modularam este cenário até a década de 1630, quando a região foi esvaziada em face dos assaltos de bandeirantes. Desenvolve também duas categorias para se compreenderem as relações travadas naquele contexto: fronteiras e espaços fronteiriços. Esta última caracteriza os espaços ocupados, porém em constantes disputas por diversos atores.

A segunda parte do livro inicia com o tema dos profetas-guerreiros. O encontro entre espanhóis e Guarani nem sempre foi harmonicamente marcado. O capítulo quatro trata da ação desses principais opositores ao regramento espanhol. Austin analisa dois movimentos ocorridos: um ao sul e o outro ao norte de Asunción. Ambos conduzidos por xamãs, porém com propósitos distintos. O primeiro tratou da capacidade de um xamã em orquestrar uma rebelião contra os agentes coloniais, promovendo e difundindo práticas litúrgicas que invertiam os ritos cristãos. O segundo descreveu um levante cujo líder propunha invadir Asunción, matar os homens espanhóis e capturar mulheres e crianças. Ambos terminaram com a execução pública de seus líderes. Segundo Austin, a despeito da força do colonizador espanhol, esses levantes foram sufocados sobretudo pelo protagonismo das milícias guarani, cujo denominador comum desses fracassos foi a oposição de uma parcela dos Guarani aos próprios Guarani (p. 154).

‘Índios fronteiriços e as milícias hispano-guarani’ debruça-se sobre os povos que viviam a oeste, no Chaco: os Guaicuru. Neste capítulo se discute a natureza do serviço militar indígena no Paraguai. O autor matiza o significado da categoria índios, dividindo-a entre inimigos e amigos. Após descrever os subsequentes ataques aos fortes e às reduções localizados ao norte de Asunción, ressalta que, mais uma vez, a permanência espanhola na região foi tributária das milícias guarani, sobretudo quando egressas das reduções jesuíticas, onde recebiam treinamento para combater as ameaças externas (p. 175). Asunción localizava-se numa zona de convergência de interesses distintos: a leste, os portugueses; a oeste, os Guaicuru. Internamente, imbróglios – entrelaçados pela oposição dos encomenderos aos jesuítas – lançaram mão das milícias indígenas.

Na terceira parte, ‘Além das missões’ analisa as reduções guarani no entorno de Asunción, cujo foco privilegia as reduções seculares às regulares. São examinadas as dinâmicas do parentesco e de mobilidade no cotidiano de grupos e pessoas guarani engajadas nas encomiendas. As reduções seculares reuniam uma população denominada tributários e que regulavam as atividades econômicas na colônia.

Nesse contexto reducional, interesses pessoais de líderes indígenas contrapunham-se aos dos demais membros de um pueblo. Os primeiros tornaram-se fornecedores de força de trabalho ao aderirem às reduções em troca de cargos e prestígios, assumindo o que o autor definiu como ‘ideologia de redução’ (p. 206). Aqui o parentesco oferece duas faces: numa, cuidado, amor e proteção; noutra, maus-tratos, castigos e violência. Isto influenciou os deslocamentos constantes das pessoas entre as reduções e as chácaras de seus senhores.

‘Outras reduções’ descreve a paisagem sociogeográfica do Paraguai. Asunción misturava uma paisagem urbano-rural. A condição social da maioria dos colonos – e o número de tributários que dificilmente ultrapassava uma dezena – não os livrava da pobreza. Indígenas e seus encomenderos compartilhavam experiências quanto ao vestuário, à alimentação, ao idioma guarani e às habitações. Em face de poucas distinções sociais, a ênfase nas relações sociais recaiu novamente no cuñadasgo. Uma variedade de classificações étnico-sociais informava o contexto assunceno: espanhóis, Guarani reduzidos, yanaconas, escravos africanos. Emergiu uma nova classificação social: os mestiços. Esta facultava ora se deslocar da servidão à encomienda, ora escapar da encomienda acionando os ‘privilégios de mestiços’ (p. 240).

A dimensão do parentesco dirigia-se sobretudo dos Guarani aos espanhóis. Aqueles percebiam as relações com os seus encomenderos por meio de noções como reciprocidade e piedade resultantes da pobreza de seus senhores. O idioma guarani – tributário das relações estabelecidas por meio do cuñadasgo (p. 250) – foi o mais difundido naquele contexto.

‘Além de mestiços’ aborda as relações estabelecidas com contingentes negros. Inicialmente, o contexto colonial esteve marcado pelas relações entre indígenas e espanhóis. Dessas uniões emergiu uma categoria de criollos e posteriormente outra de mestiços. Se entre essas categorias as relações sociais podiam ser moduladas pelo parentesco, o mesmo não podia ser afirmado quando os africanos foram introduzidos na colônia.

Não podia – nos mesmos termos – porque entre espanhóis e africanos a relação preponderante era de servidão. Entretanto, Guarani e africanos compartilharam experiências e se relacionaram produzindo proles. Seu status seria, assim como no caso anterior, ambíguo; essas ‘ambiguidades sociais e questões legais geradas por meio de uniões afro-indígenas preponderaram durante as visitas realizadas nas reduções pelas comitivas governamentais’ (p. 260). Governo, índios, negros, litígios, parentesco …

Colonial Kinship começou com um inquérito e concluiu-se com outro. Podemos aqui refletir sobre o poder das fontes documentais quando analisadas além dos contextos em que foram elaboradas. Apesar de instruírem processos, desses litígios emergem relações biológicas ou valores sociais e morais, aqui, norteados pelo parentesco. A análise documental de Austin – à luz da interface histórico-antropológica – propôs uma direção fecunda para se pensarem essas antropologias com história e histórias com antropologia escondidas reconditamente nos arquivos coloniais.